Pouco mudou na rua da Mouraria, em Lisboa, desde o incêndio de há um ano

Comerciantes e residentes dizem que pouco mudou na Rua do Terreirinho, na Mouraria, em Lisboa, onde há um ano um incêndio num prédio fez duas vítimas mortais e 14 feridos.

Pouco mudou na rua da Mouraria, em Lisboa, desde o incêndio de há um ano

“Mudou muito pouco”, constata o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho (PS), entrevistado na Rua do Terreirinho, na Mouraria, onde se destaca um alojamento local pintado de amarelo fresco.

Um migrante sai de casa já com a mochila da Glovo às costas, a tabuleta “for sale” continua afixada num prédio de esquina, sem gente há um ano, e obras noutro edifício obrigaram uma loja antiga de molduras a mudar-se temporariamente para uns metros ao lado.

Miguel Coelho admite que haja hoje “uma maior consciência dos perigos”, mas sublinha que a zona mantém “um problema estrutural, que é a habitação” e defende “soluções imediatas para aliviar o risco da sobrelotação”.

Recordando que, na sequência do incêndio de há um ano, a junta sugeriu à Câmara de Lisboa que fizesse “uma grande vistoria” a todos os prédios “para ver em que condições de habitabilidade vivem as pessoas”. Contudo, diz desconhecer se se realizaram.

“Pode ter havido [fiscalização], mas não fui informado. Tenho quase a certeza de que não houve”, arrisca dizer, recordando que ainda nem há um mês ardeu outro prédio devoluto na Rua do Terreirinho, onde, “por sorte, não estava ninguém”.

No rés-do-chão do edifício de quatro pisos onde um fogo deflagrou na noite de 4 de fevereiro de 2023, viviam mais pessoas do que as que a fração comportava.

O incêndio provocou a morte a duas pessoas de nacionalidade indiana (um menor de 14 anos e um homem adulto) e ferimentos noutras 14, todas estrangeiras. No imóvel residiam 24 pessoas, 22 das quais ficaram desalojadas: dois cidadãos portugueses, dois belgas, dois argentinos, três bengalis e 15 indianos.

“Ainda muitas pessoas vivem num só quarto, porque são as condições aqui. É muito difícil encontrar um quarto, é muito caro”, diz Kamal Batharai, diretor de uma associação de imigrantes.

“Muitos recém-chegados querem ficar nesta zona por causa do mercado de trabalho. Muitos trabalham em restaurantes até tarde e querem ficar perto”, explica o cidadão de origem nepalesa, residente em Portugal há mais de uma década. A zona da Mouraria concentra hoje uma significativa comunidade oriunda do Sul da Ásia.

“Aqui, onde estamos, há uma maioria do Bangladesh, mas também pessoas de Índia, Paquistão, Nepal. É uma comunidade que gosta de viver aqui, porque a maioria da sua família e amigos, que vieram antes, também mora aqui. Conseguem encontrar lojas e mercearias. As pessoas gostam de comprar aqui, é um dos principais centros para esta comunidade”, relata Batharai.

“Para os recém-chegados, o emprego e a habitação são as principais questões”, elenca, comentando que já não é fácil encontrar um quarto que ronde os 500 euros. Porém, rejeita que existam problemas de segurança entre a comunidade.

“A maioria vive e trabalha. Estão à procura de trabalho para viver as suas vidas, para sobreviver aqui”, assinala, reconhecendo que “não é fácil, especialmente no que diz respeito à língua e ao acesso aos serviços públicos”.

Miguel Coelho concorda e diz que os migrantes daquela zona são “muito pacíficos” e que, apesar das diferenças culturais, existe “respeito uns pelos outros”.

Recordando que Lisboa é uma cidade segura, o autarca reconhece a existência de “microcosmos onde há uma grande concentração de atividades ilícitas”, levadas a cabo por pessoas com vários tons de pele.

“A delinquência não tem raça, os traficantes são de todas as raças, naturais daqui, não naturais daqui, imigrantes, etc”, relativiza, dizendo que o que falta é “mais policiamento e mais eficaz”.

Para o comerciante e proprietário de uma loja antiga, João Nine, o que falta na zona é segurança porque “de quando em quando passa o carro patrulha e pouco mais”. “Quando a gente sai daqui parece que estamos noutro país”, diz.

Maria da Graça vive ali desde os 4 anos e diz que o bairro “não tem nada a ver” com o que era. “Segurança não há nenhuma, escurecendo mete medo”, relata.

Quando chegou à Mouraria, em 1991, Rana Taslim Uddin era um de seis cidadãos oriundos do Bangladesh que se juntavam para tomar café aos domingos.

Com a legalização extraordinária de 1993 vieram bengalis de toda a Europa, aumentando a comunidade para duas centenas, que “viveram um tempo de miséria, sem trabalho, nem comida, nem casa”, recorda.

Por isso, o presidente do Centro Islâmico do Bangladesh diz que, ainda que as condições sejam difíceis hoje, “é muito melhor do que antes” para os cerca de 60 mil bengalis espalhados pelo país, que se integram sobretudo através do comércio.

“A comunidade do Bangladesh hoje em dia tem muita riqueza, porque nessas 60 mil pessoas há mais ou menos dez mil lojistas (…), empregados de mesa, cabeleireiros, [operários da] construção, várias empresas de telemarketing”, relata. Só na Lisboa metropolitana existem cerca de 1.500 lojas, que “dão muito lucro” e onde “as pessoas investiram muito”, conta.

“Em qualquer restaurante que entre na baixa vai encontrar uma ou duas pessoas da comunidade do Bangladesh”, diz, estimando que só nos restaurantes da Rua Augusta estejam a trabalhar duas centenas de bengalis.

Afzal acaba de inaugurar um restaurante na Mouraria. Bengali de origem, tem nacionalidade portuguesa e, após uns anos emigrado na Dinamarca, decidiu regressar para investir em Lisboa, que visitou aos 20 anos, quando estudava em Londres. “Este é o meu país. Portugal é a minha mãe. Faça o que fizer, gostamos sempre da nossa mãe”, explica.

Agora com 33 anos, emprega 14 funcionários, todos imigrantes asiáticos. “Não entro no jogo das culpas. Falamos muito dos problemas e pouco das soluções”, considera, apelando ao diálogo e ao conhecimento mútuo. “As duas culturas são semelhantes”, destaca, mencionando que a língua bengali até inclui palavras portuguesas, como janela, cadeira, chá ou chave.

 

Texto: Sofia Branco;
Foto: António Cotrim

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