Como o caso da sobrevivente de violação Gisèle Pelicot pode fazer a diferença
O caso de Gisèle Pelicot, embora extremo em sua natureza, é um marco. Ela se tornou uma heroína feminista na França, e com razão, diz especialista em Psicologia Forense.
O julgamento de violação em massa que abalou a França e a Europa entrou na fase final, após dez semanas, com o Ministério Público francês a pedir pena máxima para o principal arguido – ironicamente, no dia que se assinalou o Dia Internacional da ONU para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, 25 de novembro. As suas implicações sobre como pensamos sobre violência sexual e quem a vivencia “durarão muito mais tempo”, diz Tadgh Tobin, especialista em Psicologia Forense da Universidade Nottingham Trent. Gisèle Pelicot, de 72 anos, testemunhou sobre o abuso sexual repetido e prolongado do ex-marido.
Dominique Pelicot admitiu em novembro de 2020 ter drogado a então esposa por quase uma década e ter recrutado dezenas de outros homens para violá-la. Há outros 50 homens em julgamento, além do ex-marido de Pelicot.
Gisèle Pelicot decidiu renunciar ao direito ao anonimato, ao qual as vítimas de crimes sexuais têm direito em França. Ao fazê-lo, “abriu a porta para uma conversa difícil sobre violação em relacionamentos e casamentos”, considera Tobin. “Como este caso exemplifica, as realidades da violência sexual podem ser muito diferentes do que as pessoas consideram ser “típico“. “A violação estereotipada (e outros crimes sexuais em geral) envolve uma vítima solitária, jovem, atraente e feminina atacada por um estranho, à noite, num lugar público. O agressor pode usar uma arma e a vítima resiste ao ataque fisicamente”, descreve Tadgh Tobin.
“Muito poucos casos atendem a todos estes critérios e a maioria é drasticamente diferente“, aponta. Por exemplo, “muitos sobreviventes de violação podem ser homens, mais velhos ou deficientes”. Os seus agressores podem ser “pessoas que eles conhecem e em quem confiam ou podem ser charmosos e generosos e o ataque pode ocorrer à porta fechada”. Para vítimas femininas, o agressor mais comummente relatado é um “parceiro íntimo (46%) e para vítimas masculinas é um conhecido (38%)”.
Pelicot é uma sobrevivente mais velha, “vitimizada na sua própria casa pelo ex-marido e outros que ela conhecia” – o que “está muito distante do estereótipo de ‘perigo de estranhos’ – e espelha a dura realidade de que a maioria dos casos de violência sexual ocorre entre pessoas que se conhecem e dentro de espaços privados, por norma a casa do perpetrador ou da vítima”, considera o especialista em Psicologia Forense.
Se uma vítima não sente que atende aos critérios típicos para violação ou agressão sexual, “pode minimizar a sua própria experiência ou não perceber o que aconteceu”. Esta experiência é “especialmente prevalente em casos de abuso conjugal ou relacional e entre vítimas do sexo masculino, em que os sobreviventes podem não perceber que o seu consentimento foi importante ou necessário para que o sexo ocorresse”.
Como resultado, sobreviventes não estereotipados “têm menos probabilidade de procurar apoio após terem sido vítimas de violência e, às vezes, têm mais probabilidade de sofrer resultados negativos na sua saúde física, mental e sexual”, assinala Tobin.
Credibilidade de vítimas como Gisèle Pelicot
Vítimas ou casos diferentes do estereótipo podem “muitas vezes ser desconsiderados, sofrer vergonha, culpa e culpabilização da vítima por parte de outros, incluindo o sistema de justiça”.
Vários estudos demonstram que casos não estereotipados de violência sexual têm “mais probabilidade de serem desacreditados ou minimizados” e que os seus casos têm “mais probabilidade de resultar num veredito de inocência”. Homens, deficientes e sobreviventes mais velhos de violação ou agressão sexual “têm menos probabilidade de relatar ou revelar as suas experiências às autoridades” ou, até, “aos círculos sociais por medo de não serem acreditados ou bem tratados”.
Muitas vítimas, estereotipadas ou não, têm experiências negativas ao solicitar ajuda ou em revelar o caso. Estas situações têm “menos probabilidade de serem assumidos pela polícia e “as vítimas enfrentam mais barreiras para obter suporte através de fontes como instituições de apoio para abuso doméstico“.
Ter experiências positivas ao revelar a sua experiência, seja socialmente ou com a polícia, “demonstrou melhorar muito os resultados das vítimas e o crescimento pós-traumático”. Também as torna “mais propensas a procurar apoio e a relatar” incidentes futuros. “É importante tratar todos os sobreviventes com o mesmo grau de crença e respeito, mesmo que eles não se encaixem na sua ideia do que as vítimas de violação ou agressão sexual ‘deveriam’ ser”, alerta Tadgh Tobin.
“Qualquer um de nós pode ser vítima de abuso sexual.” O caso de Gisèle Pelicot, embora extremo na sua natureza, “é um marco”. Pelicot “tornou numa heroína feminista em França, e com razão”. “A sua disposição de falar abertamente sobre as suas experiências já está a ajudar a dissipar estereótipos sobre quem sofre abuso doméstico ou sexual, e como se espera que eles ajam.”
A discussão “deve continuar, para aumentar a probabilidade de que mais vítimas tenham acesso ao apoio de que precisam e, se denunciarem ou revelarem, que a experiência seja positiva e de apoio”, considera Tadgh Tobin, especialista em Psicologia Forense da Universidade Nottingham Trent.
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