Mouraria e Little Índia, entre a tradição, os imigrantes e a marginalidade

Enquanto Miriam fotografa o elétrico 28 no Martim Moniz, em Lisboa, uma prostituta aborda um turista em inglês e toxicodependentes na Mouraria são expulsos por uma moradora. Numa rua perto, pergunta o bengali Rasni: “o problema somos nós?”

Mouraria e Little Índia, entre a tradição, os imigrantes e a marginalidade

A menos de uma semana da anunciada e entretanto proibida manifestação de extrema-direita “Contra a Islamização da Europa”, cujos promotores querem transformar numa ação de protesto, o nervosismo é evidente nas conversas do bairro. Há quem defenda a forte comunidade imigrante e quem ache que a zona mudou para pior.

Nascida e criada na Mouraria, Cristina Correia apoiou António Costa quando era presidente da Câmara de Lisboa e hoje é a favor da ação de protesto de 03 de outubro, apesar de insistir várias vezes que não é de extrema-direita.

“Venham aqui viver e vejam o que é o inferno de viver aqui”, afirma a comerciante. “Aliás, basta ver há pouco o que se passou”. Instantes antes de falar com a Lusa, Cristina expulsou dois estrangeiros que se tentavam injetar numas escadinhas a poucos metros da rua da Mouraria.

“É sempre assim”, desabafa. O consumo de droga sempre foi um problema no bairro, acentuado pelos turistas e imigrantes, diz. “Todos consomem”, lamenta, encolhendo os ombros.

Mas Cristina aponta o dedo aos imigrantes como fonte dos problemas mais recentes. “São muitos, é só lavagem de dinheiro, as lojas estão sempre a mudar de dono. As coisas pioram todos os dias e as pessoas têm medo. Experimente ir para lá ao final do dia, estão todos na rua, e uma pessoa sente-se insegura”, desabafa, apontando para norte, em direção à rua do Benformoso.

Ali, nos últimos anos, nasceu uma “Little Índia”, com dezenas de lojas, desde restaurantes étnicos, agências de viagem para o Paquistão ou Bagladesh, lojas de telemóveis ou simples armazéns. Junto às mesquitas, nalguns casos em caves de prédios degradados, aglomeram-se diariamente centenas para as orações.

E nos passeios, muitos imigrantes aguardam pelo futuro, depois de terem sido trazidos por redes, algumas ilegais, aguardando pela documentação e subsistindo de trabalhos precários.

“Recebo 400 euros [por trabalhar num armazém] e pago 200 por uma cama”, diz Rasni, que chegou há seis meses a Portugal vindo do norte do Bangladesh. “Só quero os papéis para ficar aqui na Europa”, diz à Lusa.

Quanto ao protesto da extrema-direita, Rasni não sabe de nada. Mas Rashid, que gere um minimercado na zona, já ouviu falar e está ansioso. “Se calhar vou fechar. Está cá polícia, mas vou fechar. Não quero problemas”, limita-se a dizer.

Num restaurante de comida bengali, um dos proprietários admite que o estabelecimento é mais frequentado por imigrantes. “Os portugueses não gostam tanto a nossa comida”. Mas, apesar de quase só ter conterrâneos como clientes, “o negócio não vai mal”.

“Não se percebe como algumas lojas podem sobreviver. Só abrem porque lhes interessa estar abertos para fazerem contratos de trabalho”, essenciais para os processos de regularização. Quem o diz é Assuani, proprietário de um café e de uma loja. Veio de Moçambique há muitos anos e estabeleceu-se na Mouraria.

“Nos últimos anos, as coisas mudaram imenso e sentimo-nos mais inseguros, porque não houve uma integração eficaz”, alerta o comerciante. “As coisas não foram bem planeadas. Portugal facilitou e agora torna-se mais difícil impor regras”.

Mafalda, dona de uma empresa de animação turística, discorda totalmente. “Costumo ir à loja ao pé de mim várias vezes e são sempre os mesmos. Não tenho razões de queixa dos imigrantes”. E mais, acrescenta: “Saio daqui de noite e de madrugada e nunca ninguém me fez nada”.

“As pessoas que dizem que hoje está mal, querem esquecer-se como isto era há 15 anos. Que era muito pior”, diz Ismail Ibrahim, moçambicano da Beira que vive na zona desde os anos 1970.

“As cidades mudam, crescem, transformam-se. Vamos a outros sítios, como Londres, e achamos exótico e bonito os imigrantes. Mas aqui não”, diz Ismail, considerando que Portugal está a “tornar-se multicultural, pela primeira vez na sua história”.

“Os imigrantes só vêm para aqui porque é a zona mais barata do centro de Lisboa. Aconteceu connosco [retornados], que viemos para cá na avalancha da descolonização, depois foram os chineses e agora os indianos e paquistaneses”, explica o comerciante da rua dos Cavaleiros.

“O Benformoso era a rua dos sapateiros e ninguém queria lá alugar nada. Ninguém queria as lojas”, recorda o comerciante, que aponta a droga como o verdadeiro problema da zona.

Numas ruas acima, em direção ao castelo, os caminhos estreitos são palco de compra a qualquer hora do dia.

“Portugal inteiro vinha aqui abastecer-se de droga” e esse consumo criou um “ambiente muito fechado no bairro”, explica Ismail.

Até porque muitos dos traficantes são do bairro. “Agora a maior parte está presa e quem vende não é daqui”, diz uma moradora, que teme a combinação entre esse negócio e a comunidade imigrante.

“Muitos, coitados, chegam cá na esperança de um emprego, ficam por aí e acabam por consumir porque está tudo à mão”, acrescenta.

Numa lateral do Benformoso, dois imigrantes indostânicos fumavam droga com um cachimbo em conjunto com uma portuguesa, muito magra e de olheiras, que pouco antes tinha abordado um turista ocidental. “Do you want sex?”

Depois de António Costa, então presidente da Câmara, ter mudado o gabinete para o Intendente, a droga e a prostituição desceu as ruas em direção à Mouraria e ao Marim Moniz, queixaram-se muitos residentes na zona.

“Agora temos as prostitutas e os homens à volta delas aqui mesmo junto ao centro comercial da Mouraria. Isto em pleno dia. Toda a gente vê, mas parece que ninguém quer ver”, diz uma comerciante à Lusa.

Vítor Cruz nasceu há 70 anos na Mouraria — “nem quis ir ao hospital para nascer”. Hoje, apenas uma das filhas quer continuar por lá, lamenta. “O que sinto mais falta são as pessoas que desaparecem, morrem ou vão embora. Já não conheço ninguém”.

A norte-americana Miriam, que fotografou momentos depois o simbólico elétrico 28 não sabe estas histórias. Está em Portugal apenas dois dias e quer passear pelas ruas da Mouraria e por Alfama.

“Os portugueses expulsaram todos os mouros não foi?”, pergunta à Lusa, sem entender a atualidade da pergunta.

PJA // ZO

By Impala News / Lusa

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