Deve a Ucrânia atacar território russo com armas ocidentais?

Washington “foi sempre inflexível quanto ao facto de a Ucrânia não dever usar as suas armas para atingir a Rússia”. Há no entanto relatos de que o Departamento de Estado norte-americano “está a pressionar no sentido de uma mudança à luz da nova ofensiva na região de Kharkiv”.

Deve a Ucrânia atacar território russo com armas ocidentais?

Os especialistas militares acreditam que “é a política dos EUA que está a impedir a Ucrânia de usar armamento para atacar alvos no interior da Rússia”, diz Cristóvão Morris, docente na Escola de Estratégia, Marketing e Inovação da Universidade de Portsmouth. Este facto, explica, “está a dar ao invasor uma vantagem importante à medida que desenvolve a sua recente ofensiva na região norte de Kharkiv”.

A última ofensiva começou em 10 de maio, mas a própria Kharkiv – segunda maior cidade da Ucrânia – tem sido alvo de ataques diários de mísseis desde o início da guerra em grande escala, em fevereiro de 2022.

A cidade de cerca de 1,4 milhões de habitantes, agora repleta de refugiados de cidades e aldeias vizinhas, tornou-se “numa espécie de símbolo da contínua resistência ucraniana”.

Ser capaz de utilizar as armas poderosas e de longo alcance fornecidas pelos aliados ocidentais permitiria à Ucrânia atacar alvos do outro lado da fronteira com a Rússia”. Isto ajudaria os estrategas militares de Kiev a “moldar o campo de batalha mais amplo a seu favor”, explica Cristóvão Morris. Tal como está, a Rússia “pode concentrar forças e abastecimentos em relativa segurança, uma vez que as suas principais infraestruturas, como bases aéreas e depósitos de abastecimento, ficam do outro lado da fronteira”.

Washington “foi sempre inflexível quanto ao facto de a Ucrânia não dever usar as suas armas para atingir a Rússia”. Há no entanto relatos de que o Departamento de Estado norte-americano “está a pressionar no sentido de uma mudança à luz da nova ofensiva na região de Kharkiv”.

Numa visita a Kiev, em 15 de maio, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, deu a entender que talvez fosse o momento certo para permitir que a Ucrânia utilizasse os sistemas de armas dos EUA para atacar alvos do outro lado da fronteira. “Não encorajámos nem permitimos ataques fora da Ucrânia, mas, em última análise, a Ucrânia tem de tomar decisões por si própria sobre como vai conduzir esta guerra.”

Não houve qualquer mudança política oficial, mas “a remoção desta limitação ao uso de sistemas de armas dos EUA por Kiev marcaria um momento significativo no conflito”. Apesar de todos os reveses do ano passado, “Kiev aderiu amplamente a esta regra, consciente de que violações graves poderiam reduzir o apoio estrangeiro”.

Vários aliados da Ucrânia deram luz verde a Kiev para usar os seus sistemas de armas em território russo. O ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, David Cameron, disse recentemente durante uma visita a Kiev que a Ucrânia “tem o direito absoluto de contra-atacar a Rússia”. Aparentemente, “a França está tanbém preparada para seguir o exemplo“.

A Ucrânia já conduziu ataques nas ‘profundezas’ da Rússia, utilizando as suas próprias armas, incluindo drones básicos, que prejudicaram significativamente a produção russa de combustível e chegaram inclusive a atingir Moscovo. Os recursos são, porém, limitados. “A utilização de sistemas fabricados no Ocidente permitiria à Ucrânia aumentar o ritmo destes ataques, limitando potencialmente a capacidade de a Rússia comprometer-se com mais ofensivas.”

O “santuário” da Rússia: Moscovo aproveitou a proibição dos EUA de usar as suas armas através da fronteira para concentrar bases militares e campos de aviação perto da sua nova ofensiva em Kharkiv. (Foto: Instituto para o Estudo da Guerra)
O ‘santuário’ da Rússia: Moscovo aproveitou a proibição dos EUA de usar as suas armas através da fronteira para concentrar bases militares e campos de aviação perto da sua nova ofensiva em Kharkiv. (Foto: Instituto para o Estudo da Guerra)

Os ataques da Ucrânia começaram já a perturbar a retaguarda russa. Se os sistemas de armas dos EUA fossem aprovados para utilização contra alvos na Rússia, “então o interior russo deixaria de ser seguro”. “É importante sublinhar que poderia forçar Moscovo a retirar a defesa aérea russa e a atacar aeronaves longe das linhas da frente para defender infraestruturas críticas”.

Ainda assim, uma potencial expansão da forma como esta ajuda pode ser utilizada, incluindo atingir alvos no interior da Rússia, “levanta várias considerações importantes”, explica Cristóvão Morris.

Em última análise, “não é garantido que permitir que a Ucrânia utilize armas ocidentais contra alvos na Rússia altere significativamente o equilíbrio estratégico global”. “Irá perturbar as linhas de abastecimento, as estruturas de comando e os centros logísticos russos, reduzindo dessa forma a eficácia das operações militares russas na Ucrânia. Mas não alterará fundamentalmente o equilíbrio de poder.”

Armas como os sistemas de foguetes de artilharia de alta mobilidade (Himars) “são suficientemente eficazes, mas é pouco provável que alterem a aritmética essencial em jogo no que se tornou numa guerra de desgaste brutal“. As sucessivas mobilizações levaram as forças russas a aumentarem 15% desde o início da guerra”, números que “dificilmente a Ucrânia poderia igualar”.

A Ucrânia está a lutar com o recrutamento e a sua economia “está a enfraquecer”. A menos que Kiev e os aliados “consigam mudar fundamentalmente o carácter deste conflito, as perspetivas não são boas”. Atualmente, Putin contenta-se em reprimir a resistência ucraniana e em esperar que o apoio ocidental diminua.

Neste sentido, “as próximas eleições nos EUA serão um momento-chave”. Uma nova presidência de Trump “poderá fazer com que Washington volte a concentrar-se nas questões internas, cortando eventualmente o fornecimento de ajuda militar”.

Potencial de escalada

A utilização de armas ocidentais para atacar o território russo teria além do mais “implicações geopolíticas significativas”. “Poderia levar ao aumento das tensões entre Rússia e NATO, que fornece as armas”. “O risco de escalada, incluindo a possibilidade de a Rússia retaliar contra os membros da NATO, é uma preocupação séria”, especialmente tendo em conta “o uso repetido de ameaças nucleares por Vladimir Putin com o objetivo de alimentar os receios ocidentais”.

O potencial para erros de cálculo e consequências não intencionais “não pode ser ignorado”, avisa Morris. Atacar o território russo “poderia provocar uma resposta forte e imprevisível da Rússia”. As ameaças nucleares do Kremlin, “embora muitas vezes consideradas uma arrogância, não podem ser totalmente rejeitadas”. Particularmente “se optarem por considerar os ataques diretos à sua pátria como uma ameaça existencial”. A doutrina militar russa permite aliás o uso de armas nucleares, se for esse o caso”.

O debate sobre a possibilidade de permitir a utilização da ajuda militar ocidental pela Ucrânia para atacar território russo envolve “uma interação complexa de estratégia militar e considerações geopolíticas”. Embora tal medida possa proporcionar vantagens táticas significativas à Ucrânia, “não alterará fundamentalmente o quadro estratégico global”. E além disso, acrescenta Cristóvão Morris, “acarreta riscos substanciais que devem ser cuidadosamente ponderados”.

A natureza evolutiva deste conflito “exige uma avaliação contínua e uma abordagem cautelosa para garantir que as ações tomadas contribuem para uma resolução sustentável e justa, sem evoluir para uma guerra mais ampla e mais devastadora”.

The Conversation

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