Beatriz Araújo, a aluna só de notas 20 que entrou para Medicina e não tem como comprar os livros
Beatriz Araújo conciliou o trabalho como caixa do Pingo Doce com os estudos e entrou para a faculdade com 19,4 valores. Está em Medicina, mas não tem como comprar os livros.
A portuense Beatriz Araújo faz este ano parte do leque de alunos com melhores médias de entrada na universidade. Poderia ser apenas mais uma de muitas estudantes brilhantes, mas a vida da jovem aluna do Colégio Júlio Dinis não reflete um quotidiano fácil. Beatriz Araújo conciliou os estudos com o trabalho desde os 15 anos. Passou pelo McDonald’s – o seu primeiro emprego – e pela caixa do supermercado Pingo Doce. Foi nesta última função que se manteve ao longo de todo o 12.º Ano e onde passou os seus fins de semana.
«Durante a semana, aproveitava as horas vagas entre as aulas e as explicações que dava para conseguir algum tempo de estudo na biblioteca, mesmo que pouco, e ao chegar a casa tentava despachar as tarefas domésticas o mais rápido possível para ainda ter algum tempo de estudo antes do jantar», explica ao Portal de Notícias. Por ser filha de uma funcionária do Colégio Júlio Dinis, Beatriz teve direito a desconto na mensalidade. Contudo, para fazer face às despesas e não ser «um encargo» para os pais, arregaçou as mangas e fez de tudo um pouco: trabalhos de freelancer para a Bluebird, foi modelo e deu explicações a alunos mais novos.
Família de Beatriz Araújo emigra para fazer face às despesas
A família, o seu grande suporte, deu-lhe a ajuda que podia, mas «não chegava no que se refere à parte económica». Foram essas dificuldades que levaram o pai da jovem a emigrar sozinho para o Brasil quando Beatriz tinha 14 anos. «O meu pai foi primeiro, para ver se se adaptava. Não teve grande alternativa. A empresa para a qual trabalhava aqui disse-lhe que, se queria manter o lugar, teria de ir para o Brasil. Depois, foi a minha mãe», recorda. Esse período foi «doloroso» e a jovem relembra-o com tristeza. «Foi difícil. Tinha muitas saudades, mas tive muito apoio dos meus professores, como Mariana Fernandes e a Sandra Paulo», conta. Mariana Fernandes, diretora de turma da aluna nesse período, sublinha a humildade da aluna ao reconhecer o papel dos professores nessa fase da sua vida.
«O apoio que a Beatriz diz ter sentido da minha parte não é nada mais daquilo que faço a tantos outros e que julgo estar também inerente à minha função de educadora. A Beatriz é que é diferente em reconhecê-lo. O facto de a Beatriz contactar cedo com o mundo do trabalho leva-a a valorizar a nossa função, muito mais do que outro qualquer jovem, pois é capaz de reconhecer o esforço e a dedicação que os professores depositam nos alunos», ressalva Mariana Fernandes.
A mudança para o Brasil
Depois de algum tempo a viver com os avós e o irmão mais velho, começou a pedir para se juntar aos pais. Fizeram-lhe a vontade e a então menina foi estudar para São Paulo e, depois, para o Nordeste brasileiro porque a empresa para onde o pai foi inicialmente acabou por fechar. No ano e meio em que esteve no outro continente, Beatriz frequentou uma parte do 9.º Ano e completou o 10.º no Brasil. Partiu em fevereiro de 2015 e voltou em junho, apenas para realizar os exames nacionais de 9.º Ano (Matemática e Português). Faltavam duas semanas para as provas e «não sabia nada, porque a matéria no Brasil era totalmente diferente».
Segundo a professora de Matemática de 3.º ciclo, Sandra Paulo, ajudar a estudante a passar nos exames «significou trabalhar fora de horas para ajudá-la a recuperar todos os conteúdos que não aprendeu quando foi para o Brasil». «É importante referir que a Beatriz não surgiu hoje. A Beatriz já era a Beatriz no 6.º ano quando, depois de já ter realizado todos os exercícios do seu manual, perguntou-me como poderia ir mais além. Não ia ser fácil para a Beatriz adquirir outro livro, mas, perante uma aluna como ela, só havia algo a fazer: oferecer-lhe um», recorda. Ao regressar a Portugal com os pais e «com 50 euros no bolso», quis repetir 10.º Ano porque «quase nada do que tinha aprendido coincidia com o que os alunos portugueses tinham estudado».
Nota 20 a todas as disciplinas
Para além das dificuldades académicas temporárias por que passou quando voltou para Portugal, pessoalmente foi também um período difícil. «Tive de voltar a viver com os meus avós porque os meus pais não tinham casa para os quatro e estavam a tentar recomeçar a vida. Foi complicado, mas, mais uma vez, tenho de confessar que o Colégio Júlio Dinis e os professores foram um grande apoio. «Nunca deixaram de me consolar nos fracassos, motivar nas lutas, congratular nas vitórias, cativar a cada dia e incentivar a ser mais e melhor. E isso fez uma parte da aluna que fui e sou», afirma.
Beatriz Araújo terminou o 12.º ano com nota 20 a todas as disciplinas, tendo baixado apenas uma para o nível 19 depois de ser ter enganado numa pergunta do exame nacional. Nas provas de acesso ao Curso de Medicina da Universidade do Porto, onde ingressou este mês, a aluna teve 19,5 a matemática e 19 e 18,5, às disciplinas de Física e Química e Biologia. A entrada na universidade selou um caminho nem sempre fácil, mas foi o concretizar de um sonho. «Sempre quis entrar em Medicina desde pequena, mas as pessoas diziam-me que tinha de o fazer por causa das notas. Começou a deixar-me desconfortável porque o devemos fazer por vocação e não por sermos bons alunos», conta. Houve, por isso, uma fase em que desistiu do plano, «mas a vontade de ser cirurgiã» falou mais alto. Para trás ficaram as muitas horas de trabalho conciliadas ao estudo e muitas festas falhadas, pois «por trabalhar ao fim de semana não podia sair com os amigos na medida em que queria».
Custo no ensino superior é elevado
Beatriz Araújo mudou de emprego este mês. Saiu da caixa do Pingo Doce para trabalhar na loja Tiger, onde consegue teve um horário mais compatível com o da faculdade. Deixar de trabalhar não é uma opção, porque terá ainda mais encargos nos próximos seis anos de curso. As propinas anuais rondam quase 900 euros, ao que acresce o preço elevado dos livros necessários para estudar. «Estamos a falar de manuais que, em alguns casos, custam mais de 200 euros e que são obrigatórios para poder estudar», conta. Este investimento não lhe permite dedicar-se apenas à vida de estudante. Contudo, ainda que o pudesse fazer, confessa, continuaria a trabalhar. «Talvez menos horas. Não me imagino a pedir dinheiro aos meus pais para tomar um café a esta altura da minha vida. Gosto de sentir que tenho alguma independência financeira e que não sou um encargo para eles», conclui.
Estas características de «responsabilidade e espírito de sacrifício» estão, segundo o diretor do Colégio Júlio Dinis, Marco Carvalho, na base do sucesso académico da aluna. «O sucesso académico da Beatriz, por um lado, é marcado por um sentido de dedicação e de competência que todos os professores do colégio mobilizaram ao longo da sua formação – muitas vezes para além do livresco. Por outro lado, a Beatriz soube, com mestria, apreender essa disponibilidade, à qual juntou enorme mérito pessoal, persistência, responsabilidade e espírito de sacrifício. Um exemplo ilustrativo de que os desafios podem ser conquistados», sublinha.
Convidada de Cristina Ferreira no Programa da Cristina
A história de sucesso que a jovem resume com as palavras «responsabilidade, organização e persistência» chegou à opinião pública depois de uma reportagem do jornal Diário de Notícias. Em poucas horas, tornou-se viral, com milhares de partilhas e comentários nas redes sociais. Este fenómeno levou-a a ser convidada para marcar presença no Programa da Cristina, esta sexta-feira, 27 de setembro, adiantou-nos em exclusivo. Recebeu o convite com «muita surpresa». «Nunca pensei que as coisas fossem atingir a proporção que estão a atingir e é um pouco difícil de gerir. Estou feliz, porque, acima de tudo, significa que as pessoas se identificaram de alguma forma com a minha história, que se reviram em algum ponto ou ideia. Pensar que a partilha do meu percurso pode ter impacto positivo na vida de alguém alegra-me bastante. É um grande privilégio poder participar no Programa da Cristina e espero conseguir aproveitar esta experiência da melhor forma possível, de modo a que possa enriquecer um pouco e tornar os outros um tanto mais ricos também», diz.
Os professores, a quem tece elogios sem exceção, também ficaram surpreendidos com a repercussão da reportagem. «Não esperava, de todo, mas fico muito feliz por ter atingido um público tão vasto. Fico feliz não só pela Beatriz, mas por todos os alunos que possam estar a ler esta história e a pensar “eu também posso conseguir”. E é para estes miúdos e miúdas que eu e os meus colegas cá estamos – para ajudá-los a conquistarem os seus sonhos e a atingirem os seus objetivos», confessa Sandra Paulo.
Beatriz Araújo está «emocionada» com «os comentários e as mensagens com testemunhos de vida de pessoas que passaram por muitos dos lugares» por onde ela passou e que «no final venceram as suas lutas». «Perceber que há pessoas que se identificam com os meus valores e me dão força e bons pensamentos para continuar a defendê-los… Costumo ver tantos comentários negativos na internet, numa base diária, que foi desconcertante – da melhor forma possível – ler tantos comentários bonitos, sensibilizados e cheios de boas energias. Este é o meu Portugal». conclui.
Texto: Cynthia Valente | WiN Porto; Fotos: João Manuel Ribeiro
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