Mais parceiros e novas identidades de género… A sexualidade dos jovens adultos decifrada

Mais parceiros e novas identidades de género são hoje o retrato da sexualidade dos jovens adultos. O mais recente estudo sobre o tema ajuda-nos a decifrar como são os novos relacionamentos.

Mais parceiros e novas identidades de género... A sexualidade dos jovens adultos decifrada

Em termos de sexualidade, quais são os desenvolvimentos mais recentes a acontecer entre as gerações mais jovens? A socióloga Marie Bergström coordenou The Coming Sexuality, obra coletiva que destaca a grande diversidade relacional vivenciada por jovens adultos, bem como uma redefinição de normas de género. Decifra alguns números impressionantes em resultado deste estudo, com alcance e abordagem sem precedentes.

Como podemos entender os desenvolvimentos recentes das questões de sexualidade? Qual o impacto do movimento #MeToo e da denúncia de violência sexista e sexual nos debates sobre consentimento? Como traduzir as novas questões sobre género? O estudo do Instituto Nacional de Estudos Demográficos (INED), “com escala sem precedentes”, realizado com colaboração de mais de 10 mil jovens adultos dos 18 aos 29 anos, “lança uma nova luz sobre estas questões”, afirma Maria Bergström, investigadora de sociologia do casal e da sexualidade do INED (Instituto Nacional de Estudos Demográficos francês).

Com uma equipa de 23 investigadores, a socióloga Maria Bergström usou os dados deste estudo para produzir a obra coletiva La sexuelle qui vient, publicada pela La Découverte. O objetivo era afastar-se de perguntas padronizadas para capturar a grande diversidade de relacionamentos vivenciados por esta geração. A abordagem, relacional e não centrada nas práticas, “permite compreender melhor a pluralidade de vínculos estabelecidos e as novas identificações em ação”. Assim, “a heterossexualidade vai perdendo espaço enquanto o casal tradicional, sem ser destronado, convive agora com ‘amigos sexuais’ e ‘casos de uma noite'”, conclui Bergström.

Em 2023, metade dos jovens de 18 a 29 anos teve a primeira relação sexual aos 17,7 anos

“Este número confirma que a idade de entrada na sexualidade foi ligeiramente adiada nas últimas gerações. Não é uma especificidade francesa, mas um vasto conjunto de países”, como é possível observar-se, por exemplo, na Holanda. “Isto representa uma reversão da tendência a longo prazo, pois da década de 1940 até à geração nascida em 1996, em que a idade média da primeira relação sexual atingiu 17,4 anos, a tendência foi de declínio contínuo na idade da primeira relação sexual e de aproximação gradual entre os sexos.”

Para a geração que completou 18 anos entre 1964 e 1968, a idade média era de 19,4 anos para mulheres e 18,3 anos para homens. Para os que completaram 18 anos entre 2011 e 2014, a idade média caiu para 17,5 para mulheres e 17,3 para homens, como apontam Michel Bozon, Titouan Fantoni-Decayeux e Arnaud Régnier-Loilier no livro. Depois, sobe para 18,3 para mulheres e 17,9 para homens que completaram 18 anos em 2020-2022. Ou seja, “durante a crise sanitária”. “Estamos, portanto, a assistir um efeito cíclico muito claro da covid, devido aos bloqueios e às restrições de movimento.”

A idade já tinha, contudo, “começado a aumentar anteriormente e a tendência de aumento não pode, portanto, ser explicada apenas pela crise sanitária”. Os fatores são, “sem dúvida, múltiplos”. Primeiro, “a sociabilidade mudou e esta pode ser uma das explicações”. Outro fator pode ser “a deterioração da saúde mental dos jovens: as sociólogas Tania Lejbowicz e Isabelle Parizot observam no livro que um quarto dos jovens apresenta sinais de sofrimento psicológico” – o que pode fazer com que “encontros românticos e sexuais se tornem numa barreira”. “Muito se falou sobre isto durante a covid, mas, na verdade, a situação já existia e agravou com este episódio.”

Finalmente, o contexto político e social do momento #MeToo “está a transformar as relações de género”. Como explica Michel Bozon, o momento #MeToo “começou antes de 2017 e do caso Weinstein“. Trata-se de um “desenvolvimento fundamental, que leva a questões sobre sexualidade e intimidade, o que pode ter impacto no declínio observado na idade da primeira relação sexual”. “Estamos perante uma reflexividade crescente – particularmente sobre consentimento – ligada ao aumento de recursos digitais sobre estas temáticas”, que pode ter tido “impacto na forma como os jovens, e especialmente as mulheres jovens, consideram e iniciam a sua jornada sexual”. Até que ponto esta tendência ascendente é temporária ou duradoura? “Hoje, é impossível saber-se”, diz Maria Bergström.

Em 2023, 35% dos jovens de 25 a 29 anos tinham dez ou mais parceiros

“Este é um grande desenvolvimento. O número de parceiros sexuais ao longo da vida aumentou certamente desde meados do século XX , mas, no período recente, observamos uma clara aceleração: a geração que tinha entre 18 e 29 anos em 2023 tem significativamente mais parceiros antes dos 30 anos do que a anterior.”

No último estudo Contexto da Sexualidade em França realizado em 2006, nesta faixa etária, as mulheres relataram uma média de quatro ao longo da vida. “Hoje são oito – o dobro! Os homens costumavam apontar oito, agora mencionam doze.” O crescimento do número de parceiros “também sinaliza uma profunda diversificação de relacionamentos”. Indivíduos dos 18 a 29 anos “inventaram realmente uma infinidade de novos termos para nomear estes diferentes relacionamentos”. “Há toda uma gama de nuances entre ‘casal’ e ‘casal de uma noite’ e é isso que o estudo também mostra.”

O aumento no número de namoros é impulsionado pelo “uso generalizado de aplicações de namoro (App) – 56% dos jovens dos 18 aos 29 anos usam-nas – o que facilita o acesso a parceiros”. Mas as App “não são tudo”. Os jovens também têm muitos encontros casuais que começam offline. Enquanto 21% dos homens conheceram parceiros casuais numa App, 30% conseguiram-no em locais públicos, como bares ou discotecas, e 11% enquanto estudavam; “números praticamente iguais para as mulheres”, de acordo com Bergström.

21% dos jovens tiveram uma relação sexual casual no ano passado, 15% tiveram relações sexuais contínuas

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Relacionamentos não monogâmicos, “como o poliamor, são muito divulgados, mas continuam a ser uma minoria”

Neste estudo, o interesse apontou a “três tipos de relacionamento”: o casal, a “forma relacional dominante” e, “no outro extremo do espectro”, o casal de uma noite. Entre os dois polos, “observámos um ‘continuum’ relacional a que chamamos ‘relacionamentos contínuos'”. Entre o casal e o sexo casual, “há hoje uma infinidade de outros relacionamentos que podem durar determinado tempo, mas que, para os jovens, não constituem um ‘casal'”.

Quando solicitados a descrevê-los, “usam um grande número de termos”. “Durante o nosso estudo, foram identificados mais de 300, alguns muito específicos e outros bastante recorrentes. “‘Sexfriend’ [amigo sexual] é o termo mais normalmente usado, mas também encontrámos ‘regular sex plan’ [plano regular de sexo] e ‘friends with benefits’ [amigos com benefícios]”.

Sexfriend “é mais frequentemente usado para se referirem a um parceiro sexual (às vezes conhecido online) com quem se desenvolve um relacionamento sexual amigável”. Friends with benefits “é mais frequentemente usado para se referirem a alguém que se conhece por intermédio de amigos e com quem se desenvolve um relacionamento sexual”. “E conseguimos ainda identificar outros termos mais minoritários, como ‘aventura’ e flirt’, que existem há muito mais tempo.”

“O que nos impressionou em particular foram estes relacionamentos que confundem a linha entre amizade e sexualidade. Relacionamentos amigáveis ​​onde a sexualidade estava presente podem ter existido no passado, é claro, mas o que é novo é o fato ter-se passado a nomeá-los”, assinala a socióloga. “Colocá-los em palavras é querer fazer algo existir, dar forma de reconhecimento, de legitimidade”, explica.

66% dos jovens estiveram num relacionamento no ano passado

A norma conjugal “continua muito forte, mas, ao mesmo tempo, multiplicaram-se outras formas relacionais”, que não tem “nada de contraditório porque hoje os caminhos da vida são verdadeiramente marcados por fases de alternância entre o casal e o celibato, sendo este último vivido como um tempo de experimentação”. “Estas experiências são esperadas normalmente durante na idade dos ‘vintes’ e existe a ideia de que quando somos jovens e solteiros, temos de ‘aproveitar’.”

Atualmente, “27% dos jovens entre os 18 e os 29 anos vivem com um parceiro coabitante – embora seja uma tendência de queda”. “Os nossos números confirmam as observações do INSEE: em 1990, 46% dos jovens dos 20 aos 29 anos viviam com um parceiro coabitante, mas o número caiu para 35% em 2021“. “É no entanto importante sublinhar que há uma mudança: a coabitação não é rejeitada; ao aproximarem-se dos 30, a maioria dos jovens passa a viver como casal sob o mesmo teto. É também quando vemos a paternidade emergir. Aos 29 anos, 46% das mulheres são mães e 30% dos homens pais.” Ou seja, “o casal como instituição e como ideal continua muito presente”.

70% dos jovens em relacionamentos discutem exclusividade sexual

Mais parceiros e novas identidades de género... A sexualidade dos jovens adultos decifrada
“A exclusividade sexual é questionada em algum momento do relacionamento, normalmente quando o relacionamento começa”

Exclusividade sexual é o tema da tese de Malena Lapine, jovem investigadora do INED francês (Instituto Nacional de Estudos Demográficos). A percentagem mostra que a exclusividade num casal deixou de ser “algo garantido”. “A exclusividade sexual é questionada em algum momento do relacionamento, normalmente quando o relacionamento começa.”

Grande maioria dos jovens, no entanto, opta pela exclusividade. Praticamente nove em cada dez pessoas (88%) num relacionamento que discutiram o assunto com o parceiro decidiram-se pela exclusividade e apenas 4% dos que abordaram o assunto optaram por uma configuração não exclusiva. Para os restantes 8%, “é mais complicado: nada foi decidido ou não houve acordo entre parceiros”.

O estudo revela ainda que relacionamentos não monogâmicos, “como o poliamor, são muito divulgados, mas continuam a ser uma minoria”. O “relacionamento aberto está hoje no campo de visão de todos – principalmente através das redes sociais – e 20% dos jovens dizem ser capazes de vivenciar um relacionamento deste tipo, mas a transição para a prática continua rara e socialmente restrita”.

Entre 2006 e 2023, a proporção de sexualidades minoritárias (não heterossexuais) “aumentou cinco vezes entre os jovens de 18 a 29 anos”, passando de menos de 3% para 15%. “É um salto espetacular, e ainda mais espetacular entre as mulheres – 19% das jovens (ou seja, uma em cada cinco) identificam-se como algo diferente de heterossexual, em comparação com 8% dos homens.”

“O que estamos a ver entre as mulheres é um aumento muito forte no que os meus colegas Tania Leibowicz e Wilfried Rault chamam de multissexualidade, porque são a bissexualidade (sentir-se atraído por ambos os sexos) e a pansexualidade (não definir o desejo de alguém pelo prisma do género) que estão a aumentar muito. Isto corresponde a uma forma maior de abertura e potencialmente a uma crítica ao binário de género.”

“Há hoje muito mais mulheres jovens que se identificam como pansexuais ou bissexuais do que aquelas que se identificam como lésbicas (em 2023, 10% das mulheres jovens se identificam como bissexuais, 5% como pansexuais e 2% como lésbicas). Em contexto pós #MeToo, isto deve, sem dúvida, ser lido como uma crítica e uma forma de desfiliação da heterossexualidade. Também está muito ligado à disseminação do feminismo. Nos últimos anos, especialmente em França, tem havido muita discussão sobre prazer, desejo, consentimento e heterossexualidade, contexto muito importante, na minha opinião, para entender os desenvolvimentos”, considera Maria Bergström.

Para os homens, o aumento das sexualidades minoritárias “é real, mas muito menor: 8% definem-se como algo diferente de heterossexuais, incluindo 3% como gays”. Uma das formas de entender a situação é a de que “mesmo que a aceitação da homossexualidade masculina aumente, a figura do ‘bicha’ continua a atuar como fator de dissuasão entre os jovens, como mostra o trabalho da socióloga Isabelle Clair sobre os adolescentes“.

“As visões sobre a sexualidade feminina e masculina “não são simétricas”. “O equivalente feminino de ‘bicha’, em termos de insulto, não é ‘lésbica’, é ‘fufa’. Para os homens, é sobretudo o desvio da heterossexualidade que é estigmatizado. Para as mulheres, é o desvio da norma feminina de reserva sexual. As coisas mudaram, é claro, mas estas figuras não desapareceram. Há atualmente tensões normativas entre estas figuras repulsivas ainda presentes, por um lado, e, por outro, novas normas mais abertas.”

1,7% dos jovens de 18 a 29 anos se identificam como não binários

“É importante sublinhar que esta foi o primeiro estudo a capturar pessoas não binárias. Em todas as investigações estatísticas realizadas até agora, a pergunta era “Você é homem ou mulher?”. Este estudo, porém, proporcionou a oportunidade de definir como não binário e demonstrou-se que isto diz respeito a uma pequena minoria.”

Há contudo “questões mais amplas em torno do género”. O trabalho de Mathieu Trachman sobre género demonstra-o. De facto, 24% dos jovens dizem que questionaram a feminilidade e a masculinidade. O número é o mesmo para homens e mulheres. “Não temos elementos de comparação, porque a pergunta não foi feita desta forma em estudos anteriores, mas podemos supor que o contexto #MeToo encorajou as perguntas.”

43% das mulheres relatam que alguém as forçou ou tentou forçá-las a submeter-se ou obrigá-las a submeter-se a práticas sexuais ao longo da sua vida

“O número está a aumentar significativamente. Em 2006, 23% das mulheres denunciaram estes incidentes. A questão que surge invariavelmente quando nos deparamos com estes acontecimentos é se é um o crescimento nas denúncias ou o fenómeno em si.” No estudo, os sociólogos Florence Maillochon e Mathieu Trachman enfatizam dois elementos. “É claro que, graças ao movimento #MeToo em particular, a violência contra as mulheres está a tornar-se cada vez mais visível. Portanto, falam com mais facilidade sobre o que vivenciaram.”

“O que classificamos como violência também está a mudar. As gerações atuais consideram intoleráveis ​​situações ou ações que eram percebidas como bastante normais no passado. A tese de Rébecca Lévy-Guillain demonstra claramente que os debates em torno do consentimento incentivam uma reinterpretação de experiências passadas – o que era anteriormente considerado aceitável deixou de ser.”

Florence Maillochon e Mathieu Trachman apontam também para uma maior exposição das mulheres jovens a situações de risco, devido ao facto de terem mais parceiros do que no passado, principalmente parceiros de curto prazo. “Se a geração mais jovem relata mais violência do que as gerações mais velhas é porque qualificam mais facilmente algumas das suas experiências como relações sexuais forçadas ou tentativas de relações sexuais forçadas, mas também porque, por terem muito mais parceiros, estão mais expostas à violência sexual masculina”, certifica Maria Bergström, investigadora de sociologia do casal e da sexualidade do INED (Instituto Nacional de Estudos Demográficos) francês.

The Conversation

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