O esquecimento pode ser um benefício e não um problema

Esquecer faz parte do nosso quotidiano. De certeza que já entrou numa sala e não se lembra do que foi lá fazer – isto é apenas sinal de perda de memória ou há benefícios no esquecimento?

O esquecimento pode ser um benefício e não um problema

O esquecimento faz parte das nossas vidas diariamente. Podemos entrar numa sala apenas para nos esquecermos do que fomos afinal fazer lá. Ou talvez alguém nos cumprimente na rua e nós não consigamos lembrar-nos do nome da pessoa. Mas por que é que nos esquecemos das coisas? É um simples sinal do comprometimento da memória ou há benefícios no esquecimento?

Uma das primeiras descobertas nesta área destacou que o esquecimento pode ocorrer simplesmente porque as memórias da pessoa média desaparecem. A constatação pertence ao psicólogo alemão do século XIX Hermann Ebbinghaus, cuja “curva do esquecimento” mostrou como a maioria das pessoas esquece os detalhes de novas informações muito rapidamente, mas isso diminui com o tempo. Mais recentemente, isso a teoria foi replicada por vários neurocientistas.

A curva do esquecimento

curva do esquecimento

No entanto, “esquecer também pode servir propósitos funcionais”, afirma Elva Arulchelvan, professora de Psicologia e Investigadora Doutorada em Psicologia e Neurociência da Trinity College Dublin. “Os nossos cérebros são bombardeados com informações constantemente. Se nos lembrássemos de cada detalhe, seria cada vez mais difícil reter as informações importantes”, explica.

Uma das formas de evitar que isto aconteça é, “em primeiro lugar, não prestar atenção suficiente”. O prémio Nobel Eric Kandel, e uma série de investigações subsequentes, sugerem que “as memórias são formadas quando as ligações (sinapses) entre as células do cérebro (os neurónios) são fortalecidas”.

Prestar atenção a algo “pode fortalecer essas ligações e sustentar essa memória”, acrescenta Arulchelvan. “Esse mesmo mecanismo permite-nos esquecer todos os detalhes irrelevantes que encontramos a cada dia. Por isso, embora as pessoas mostrem sinais crescentes de distração à medida que envelhecem, e distúrbios relacionados com a memória, como a doença de Alzheimer, estejam associados a deficiências de atenção, todos nós temos de ser capazes de esquecer todos os detalhes sem importância para podermos criar memórias.”

Lidar com novas informações

Por vezes, “recordar também pode levar a uma mudança na própria memória, com a finalidade de lidarmos com novas informações”. “Suponhamos que o seu trajeto diário envolva conduzir a mesma na rota. Provavelmente, tem uma memória forte para essa rota, com as ligações cerebrais subjacentes fortalecidas a cada jornada.”

Elva Arulchelvan propõe um exercício curioso, e provavelmente recorrente para muitos de nós. “Suponha que numa segunda-feira, uma das suas estradas habituais está fechada, e que há uma nova rota para as próximas três semanas. A nossa memória para a jornada tem de ser suficientemente flexível para incorporar essas novas informações. Uma forma pela qual o cérebro faz isto é enfraquecendo algumas das ligações da memória, enquanto fortalece ligações adicionais para nos lembrarmos da nova rota.”

Já regressou a casa ao fim de um dia de trabalho e mal se lembra de ter conduzido até lá?
Já regressou a casa ao fim de um dia de trabalho e mal se lembra de ter conduzido até lá?

A incapacidade de atualizar as nossas memórias teria consequências “significativamente negativas”. Considere o transtorno de stresse pós-traumático, em que a incapacidade de atualizar ou de esquecer uma memória traumática significa que um indivíduo é perpetuamente desencadeado por lembranças no seu ambiente.

Do ponto de vista evolucionário, “esquecer velhas memórias em resposta a novas informações é, sem dúvida, benéfico”, assume a professora. “Os nossos ancestrais caçadores-coletores podem ter visitado repetidamente um poço de água seguro, apenas para um dia descobrir um assentamento rival, ou um urso com crias recém-nascidas. Os cérebros deles tinham de ser capazes de atualizar a memória para rotular esse local como inseguro. Não fazê-lo seria uma ameaça à sua sobrevivência.”

Reativar memórias

O esquecimento “pode não ser devido à perda de memória”, mas, antes, “a alterações na nossa capacidade de acessar às memórias”. Experiências com roedores “demonstraram como memórias esquecidas podem ser lembradas (ou reativadas) ao dar suporte às ligações sinápticas já mencionadas”.

Os roedores foram ensinados a associar algo neutro (como um sino a tocar) com algo desagradável (como um choque leve na pata). Após várias repetições, os roedores formaram uma ‘memória de medo’, em que ouvir o sino os fazia reagir como se esperassem um choque. Os investigadores “conseguiram isolar as ligações neuronais ativadas ao soar do sino e o choque, na parte do cérebro conhecida como amígdala”, esclarece Elva Arulchelvan.

“Os cientistas perguntaram-se então se a ativação artificial desses neurónios faria os roedores agirem como se esperassem que a sua pata apanhasse um choque, mesmo que não houvesse sino nem choque. Usaram a técnica da estimulação optogenética, que envolve o uso de luz e engenharia genética, e mostraram que era de facto possível ativar (e subsequentemente inativar) tais memórias”, conta.

Uma forma pela qual isto pode ser relevante para os humanos é “através de um tipo de esquecimento transitório que pode não ser devido à perda de memória”. “Regressemos ao exemplo anterior, em que encontramos alguém na rua e não conseguimos recordar o nome dela. Acredite que se soubermos a primeira letra lembramo-nos de imediato do nome esquecido. Isto é conhecido como ‘fenómeno da ponta da língua’.”

Quando este fenómeno foi originalmente estudado – pelos psicólogos norte-americanos Roger Brown e David McNeill, na década de 1960 – foi relatado que a capacidade das pessoas identificarem aspetos da palavra ausente “era mais do que acaso”. A descoberta sugeriu que “a informação não foi totalmente esquecida”.

O esquecimento acontece por uma série de razões. Porque não estávamos a prestar atenção ou porque as informações decaem com o tempo
O esquecimento acontece por uma série de razões. Porque não estávamos a prestar atenção ou porque as informações decaem com o tempo

Uma das teorias é a de que o fenómeno ocorre como “resultado de ligações enfraquecidas na memória entre as palavras e os seus significados, refletindo dificuldade em recordarmos as informações desejadas”.

Outra possibilidade, entretanto, é que a de que o fenómeno possa servir como “sinal para o indivíduo de que a informação não foi esquecida, e que está apenas e temporariamente inacessível”, explica Arulchelvan.

O ‘fenómeno da ponta da língua’ “pode explicar o motivo pelo qual o esquecimento ocorre com mais frequência à medida que as pessoas envelhecem e se tornam mais informadas”. Ou seja, “significa que os seus cérebros precisam de classificar mais informações para recordar algo”. “O ‘fenómeno da ponta da língua’ pode ser o meio pelo qual o cérebro nos deixa saber que a informação desejada não foi esquecida, e que a perseverança pode levar a uma recordação bem-sucedida.”

Em suma, podemos esquecer informações por uma série de razões. Porque não estávamos a prestar atenção ou porque as informações decaem com o tempo. Podemos esquecer para atualizar memórias. E, por vezes, as informações esquecidas não são perdidas permanentemente, mas sim inacessíveis. “Todas estas formas de esquecimento ajudam o nosso cérebro a funcionar de forma eficiente e têm apoiado a nossa sobrevivência através das nossas muitas gerações.”

A conclusão de Elva Arulchelvan, professora de Psicologia e Investigadora Doutorada em Psicologia e Neurociência da Trinity College Dublin, “não serve contudo para minimizar os resultados negativos causados ​em pessoas que se tornam muito esquecidas (por exemplo, por causa da doença de Alzheimer)”. “No entanto, esquecer tem as suas vantagens evolutivas. Espero que tenha achado este artigo suficientemente interessante para não esquecer o seu conteúdo tão depressa”, ironiza a investigadora.

The Conversation

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