Pais que matam os filhos suicidam-se ou são “agredidos selvaticamente na prisão”

Choques elétricos, dedos entalados em portas até ficarem partidos, pontapés e murros são as agressões mais comuns sofridas pelos reclusos que matam os filhos. Muitos suicidam-se. Os presos mais jovens são os que mais os agridem. Especialistas reclamam mais psicólogos nas cadeias para acompanhar estes casos.

Pais que matam os filhos suicidam-se ou são

Como em muitos dos casos de pais que matam os filhos, João Cerqueira Pinto viveu um dia perfeitamente normal, até ao ponto em que cometeu um crime horrendo. Foi buscar a filha à escola e, já em casa, ajudou-a com os trabalhos do dia. Depois, foi para a cozinha preparar o jantar. O dele e o da filha, como fazia sempre. Maria João, de sete anos, desapareceu por minutos, para ir à casa de banho. Quando voltou, o pai agarrou-a. Pôs-lhe o cinto do roupão à volta do pescoço e sufocou-a. “Inclinei-me e puxei as pontas do cinto. Ela estrebuchou um pouco, mas não gritou”, conta o homem que, em 2009, chocou a população de São Mamede de Infesta, Matosinhos, com o homicídio da filha.

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Um ano mais tarde, João Cerqueira Pinto foi encontrado enforcado na cadeia de Paços de Ferreira. Estava nu da cintura para baixo. O homem, que vizinhança e amigos consideravam “um pai extremoso, muito apegado à criança”, nunca explicou o que o tinha levado a matar a filha. Durante o julgamento, disse apenas que estava “perturbado” pelo divórcio recente. Terá sido por isso que, depois do crime, enviou uma mensagem escrita à mãe da criança a contar o que se tinha passado.

Pais que matam os filhos “têm de ficar permanentemente separados dos outros” reclusos

Colocado em prisão preventiva na cadeia de Custóias, em Matosinhos, tentou suicidar-se, depois de sofrer alguns episódios de psicose e alucinações. Foi transferido posteriormente para a ala psiquiátrica do hospital-prisão de Caxias, onde ficou durante algum tempo em vigilância. Foi, depois, enviado para Paços de Ferreira, e recebido num clima de grande tensão pelos outros reclusos. No dia da chegada, foi insultado e ameaçado. Acabou por suicidar-se, em 2010.

“Apareceu enforcado, despido da cintura para baixo, numa janela do lado de fora da cela, o que não é normal” [imagem ilustrativa]
O presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional (SNCGP) conta que “este tipo de recluso tem de ficar permanentemente separado dos outros, para prevenir este tipo de situações”. “Não há regras e temos de ser nós, guardas, a tentar minimizar os danos. As agressões são frequentes e muitas são evitadas porque conseguimos intervir.” Situações que poderiam evitar-se se “os reclusos fossem separados por tipologia de crime”.

Choques elétricos e pontapés

Choques elétricos, dedos entalados em portas até ficarem partidos, pontapés e murros (principalmente na cabeça) são as agressões violentas mais comuns sofridas pelos reclusos que cumprem pena por filicídio (assassínio dos próprios filhos). Jorge Alves confirma que os pais que matam os filhos são recebidos com muita animosidade pelos outros presos. E que na maioria dos casos sofrem agressões físicas e verbais de forma continuada. Estes homicidas especiais tentam muitas vezes o suicídio, por “peso na consciência” e “para fugir às pressões de que são alvo”.

Foi o que aconteceu também a Francisco Esperança, que, em 2012, matou a mulher, a filha e a neta. Surgiu enforcado no Estabelecimento Prisional de Lisboa, para onde tinha sido enviado por receio de represálias por parte de outros reclusos, já que estes “nunca deixam passar em branco este tipo de crimes que envolvem crianças”.

O bancário reformado, licenciado em Direito, causou reboliço na prisão quando a população prisional soube de quem se tratava. Foi preciso acalmar os ânimos aquando da sua chegada ao estabelecimento. Francisco Esperança era o homicida de quem todos falavam na altura – tinha dizimado toda a família, matando-a à catanada, num dos crimes mais sangrentos de que há memória. O massacre fez inúmeras manchetes de jornais e foi considerado um dos piores crimes de sempre no nosso país. Segundo apurámos, houve quem fizesse apostas para saber “quanto tempo ia durar”. Dias depois de chegar à prisão, enforcou-se na cela com os lençóis da cama, em 17 de Fevereiro de 2012. O Ministério Público (MP) abriu um inquérito para apurar o que tinha, de facto, acontecido.

Pais que matam os filhos suicidam-se ou são "agredidos selvaticamente na prisão"
Encontrado morto na cela, não se sabe o suspeito da morte da ex-companheira e do filho de ambos se suicidou ou se teve morte natural [imagem ilustrativa]
Um outro alegado filicida foi encontrado morto na cela da cadeia anexa à Polícia Judiciária (PJ) do Porto. Não se sabe ainda se António Reis, suspeito da morte da ex-companheira e do filho de ambos, se suicidou com ingestão de medicamentos ou se teve morte natural. O crime que o levou à cadeia tinha ocorrido dias antes, em Ermesinde. O dia 23 de Julho de 2017 foi, para uma das vítimas, Marinha Gonçalves, ex-companheira do homicida, igual a tantos outros. Foi trabalhar e, depois do expediente, jantou em casa de familiares, como fazia várias vezes por semana.

Naquela noite, regressava calmamente ao apartamento onde vivia apenas com o filho de cinco anos, que já se tinha recusado estar com o pai algumas vezes, porque “tinha medo dele”. Foi com o pretexto de ver a criança que António Reis se dirigiu à porta do prédio onde Marinha Gonçalves e o filho viviam. Esperou que ambos saíssem do carro para abordá-los. A mulher pegou no filho ao colo e dirigiu-se até à porta de casa. Não chegou a entrar. Mãe e filho foram baleados – a mulher no pescoço e a criança na cabeça.

Ainda foram levados com vida para o Hospital São João, no Porto, mas acabaram por falecer. António Reis foi preso horas após o crime e colocado numa cela com outros dois detidos para, segundo a PJ, evitar o suicídio. O Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto abriu um inquérito para averiguar a causa da morte.

Matou filho de cinco meses à facada

Foi também por medo de represálias, pelo alarme social que o crime provocou, e para evitar o suicídio, que João Barata – homicida confesso do filho de cinco meses, morto à facada – foi colocado em prisão preventiva no Hospital Prisional de Caxias. Durante uma discussão por telefone (em de março de 2018, em Linda-a-Velha) com a companheira e mãe do bebé, João Barata ameaçou, como já tinha acontecido inúmeras vezes, matar o filho – fazia-o sempre que a companheira falava em terminar a relação.

Alarmada, a mãe da criança – nesse dia, o miúdo estava com o pai – ligou para a PSP, que chegou à habitação já depois de o crime ter ocorrido. Os agentes e os bombeiros encontraram Henrique com uma faca de cozinha espetada lateralmente no peito, deitado na cama. Alguns bombeiros tiveram mesmo que afastar-se do local do crime, para recuperarem do choque.

O “abandono” por parte dos familiares e amigos é comum quando se trata de pais que matam filhos, apesar dos remorsos que muitos demonstram

Antes de ser detido, o alegado homicida fotografou o crime e enviou as imagens à mãe do bebé, como forma de castigo e para provar que, desta vez, tinha passado da ameaça à prática. Apesar da constante vigilância na cadeia, João Barata envolveu-se em brigas com outros reclusos e não contou com o apoio de familiares, nem de amigos – raras vezes recebeu visitas. Jorge Alves diz que estes homicidas sentem, frequentemente, “uma culpa muito grande”. “Não querendo justificar os crimes”, sublinha, “muitos destes reclusos cometem os homicídios num ato de loucura e arrependem-se logo”. “A culpa e as pressões levam-nos ao suicídio.”

Vítor Ilharco, secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR), acredita que muitos destes suicídios “não acontecem logo porque num primeiro momento há uma grande vigilância destes homicidas”. “É preciso destacar psicólogos para as cadeias, já que, com estes profissionais, nunca se permitiria, por exemplo, que um homicida dividisse a cela com reclusos de crimes menores”, sustenta.

Fernando Almeida, psiquiatra forense, autor do livro Homicidas em Portugal, explica o que leva, tantas vezes, os filicidas a porem termo à própria vida. “Estamos a falar de crimes consanguíneos e, por isso, diferentes de todos os outros. Quem os pratica está ligado à vítima por laços de afeto. O filicídio é um ato cometido, muitas vezes, num quadro psicótico.”

Pais que matam os filhos suicidam-se ou são "agredidos selvaticamente na prisão"
Para fugirem às agressões, os filicidas optam, com frequência, pelo isolamento, mantendo-se fechados na cela

O psiquiatra sublinha ainda que “quando o filicida volta ao estado normal constata que fez uma enormidade”. Segundo o psiquiatra forense, seria necessário maior intervenção de psicólogos e de psiquiatras nas cadeias. Opinião partilhada por Jorge Alves, que acredita que filicidas e pedófilos “deveriam ser submetidos a terapias”. Para fugirem às agressões, os filicidas optam, com frequência, pelo isolamento, mantendo-se fechados na cela. Foi o caso de Vanessa, condenada a 11 anos pelo homicídio da filha recém-nascida, que atirou a um poço, em conluio com o pai da bebé. Isolou-se das restantes reclusas quando chegou à prisão. Tem-se mantido assim.

Quem também se afastou da restante população prisional foi Leonor Cipriano, presa pela morte da filha Joana, em 2004. Cumpriu pena de 16 anos em Odemira, onde, “se manteve afastada de confusões”, depois de ter acusado inspetores da PJ de tortura e de agressões. O tio da criança, João Manuel Cipriano, condenado ao mesmo tempo de prisão efetiva, 16 anos, pela morte da sobrinha, esteve preso no Estabelecimento Prisional de Belas, na Carregueira, sob vigilância permanente.

Mãe e tio de Joana Cipriano mataram-na, de acordo com o tribunal, que lhes aplicou 16 anos de prisão efetiva

Em 2003, Catarina Filipa, com pouco mais de dois anos, foi maltratada até à morte pelo pai, José Gomes, e pela madrasta, Clara Moreira. Em Ermesinde, ainda se fala no assunto nos cafés e entre a vizinhança. A criança tinha marcas de penetração vaginal e anal, sinais de violência física e de abusos sexuais continuados. Inicialmente, a madrasta foi encaminhada para a cadeia de Custóias, mas, quando souberam por que estava lá, as outras reclusas revoltaram-se e Clara Gomes acabou por cumprir parte da pena em Felgueiras. Foi depois recolocada em Santa Cruz do Bispo, Matosinhos, com sinais de depressão.

“Para evitarem agressões, muitos reclusos pedem transferência, que não é facilitada pelo sistema, mesmo quando o motivo é a integridade física das pessoas”, explica Vítor Ilharco, secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR). A mesma fonte afirma ainda que os filicidas “são agredidos selvaticamente quando chegam à prisão”. “Muitas vezes, os guardas fecham os olhos e até são eles quem informam os outros condenados sobre o tipo de crime cometido por quem chega de novo.”

“Desgraçaste a minha vida e agora vou desgraçar a tua”

Há, porém, filicidas que dizem não se arrependerem dos crimes que cometeram. É o caso de Kelly Oliveira que, em dezembro de 2012, matou os filhos, de um e de dois anos. Poucos dias antes do Natal, ateou fogo à habitação onde vivia com o marido, em Alenquer, provocando a morte das crianças. Depois de abandonar a casa em chamas, deixou um bilhete ao companheiro. “Desgraçaste a minha vida e agora vou desgraçar a tua”, podia ler-se.

Ligou também à sogra a contar “de forma fria e calculista” o que tinha feito, segundo a acusação. Em Tribunal, onde foi condenada a 24 anos de cadeia, justificou o crime alegando que queria vingar-se do marido e da sogra. Recusou pedir desculpa e não mostrou sinais de arrependimento. Kelly Oliveira foi inicialmente colocada num hospital psiquiátrico, em Coimbra, por dois motivos. Para receber tratamento e como medida de segurança para evitar eventuais retaliações na cadeia.

Os casos chocantes de pais que matam os filhos e os torturam até à morte são muitos. Foi também esse o fim de vida trágico da pequena Leonor, que teve morte lenta e agonizante. Em Agosto de 2017, o pai colocou-a, alegadamente, em água a ferver para que a bebé parasse de chorar. Segundo a acusação, “cobriu posteriormente o corpo da filha com sal e calou-lhe o choro compulsivo com vinho”, para não chamar a atenção dos vizinhos.

Depois de uma tortura de longas horas e vendo que a bebé tinha deixado de reagir, a mãe contactou o INEM. O cenário encontrado chocou médicos e enfermeiros. Leonor tinha 50 por cento do corpo queimado e parte da pele estava ainda a boiar na água da banheira. Emanuel Mário ficou detido e pediu proteção na cadeia, onde tentou sempre manter-se afastado dos outros reclusos.

Em Novembro de 2010, Sandra Monteiro também matou o filho Tiago, de dois anos. Afogou-o numa ribeira, em Rio de Mouro. A mulher chegou a inventar um outro cenário, perante as autoridades, dizendo que cinco homens teriam afogado a criança. Tese que não convenceu os investigadores. Logo após o crime, tentou suicidar-se, mas acabou detida e acusada. Foi condenada pelo Tribunal de Sintra a 18 anos de cadeia por homicídio qualificado.

Mergulhada em água a ferver e queimada com um ferro como castigo

Vanessa Filipa, criança de cinco anos, foi assassinada pela avó e pelo pai, em 2005, no Bairro do Aleixo, no Porto, por recusar-se a dizer às assistentes sociais que queria viver com a avó. Vanessa estava a ser criada por uma mãe adotiva, mas o processo ainda não estava concluído. A menina continuava a ver a avó esporadicamente, que, entretanto, ficou a saber por uma vizinha que, se pedisse a guarda da neta, teria direito a um subsídio por parte da Segurança Social. Foi mergulhada em água a ferver e queimada com um ferro como castigo por não querer viver com a avó, acabando por não resistir às lesões.

Quando o pai e a avó perceberam que Vanessa estava morta, encenaram um rapto. Afirmaram que a menina tinha desaparecido na feira. Nessa altura, num domingo de manhã, já o corpo de Vanessa se encontrava no Rio Douro. Quando resgataram o corpo da água, ficou imediatamente clara a tortura a que tinha sido sujeita. As marcas das queimaduras eram bem visíveis. A família de Vanessa era acompanhada por técnicos do Rendimento Social de Inserção, mas não a sinalizaram como estando em risco.

Foi aberto um processo de averiguações logo após a morte da criança para se apurarem eventuais responsabilidades. Também a família de Maria Isabel (Bia), de dois anos – alegadamente morta à pancada pelo padrasto, no início do mês de março de 2018 –, estava sinalizada pelo núcleo da Comissão Nacional de Crianças e Jovens em Risco, de Loures, desde Setembro de 2014, altura em que surgiram os primeiros sinais de violência física. O companheiro de Cátia Teixeira, de 24 anos e mãe da criança, tomava conta da menina e do irmão, também ele vítima de maus-tratos. Para Bia e para tantas outras crianças, a ajuda não chegou a tempo.

Reportagem WiN, por Cynthia Valente

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