A Síndrome de Asperger será mesmo uma forma leve de autismo?

O Dia Mundial da Consciencialização do Autismo (World Autism Awareness Day) assinala-se em 2 de abril, mas a visita a Lisboa de Greta Thunberg reaviva o tema. O que é, afinal, a síndrome de asperger?

A Síndrome de Asperger será mesmo uma forma leve de autismo?

A Síndrome de Asperger – de que Greta Thunberg é portadora – foi despromovido em 2013, mas a discussão sobre se esta condição é robusta o suficiente para ser diagnosticada de forma isolada continua. No entanto, os avanços levaram a, de certa forma, incluí-la como um dos aspetos do autismo. Em conversas leigas, ouve-se muitas vezes a definição de que «a Síndrome de Asperger é uma forma leve de autismo». Será?

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Miguel Palha, médico pediatra e diretor clínico do Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças, explica que «a Síndrome de Asperger era [desde 1994 até 2013] a associação de dificuldades no relacionamento social, desinteresse, e comportamentos repetitivos, fixações em objetos ou temas, como horários de comboios, enfim, fixações muito intensas sobre determinados assuntos associados a comportamentos repetitivos».

«Era condição que a linguagem, designadamente a sintaxe, e, de modo geral, toda a gramática, estivesse intacta, bem como o desenvolvimento cognitivo. Ou seja, estávamos perante um sujeito com dificuldades no relacionamento social, desinteresse na reciprocidade e na interação social (comportamentos anómalos do ponto de vista da socialização) e comportamentos repetitivos. O autismo era similar, mas os sujeitos tinham também dificuldades na linguagem», assinala Miguel Palha.

A história da Síndrome de Asperger

Pedro Caldeira da Silva, chefe de equipa da UPI – Unidade da Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia –, vai à génese para contar que a «Síndrome de Asperger tem o nome de um médico austríaco que publicou os seus trabalhos durante a II Guerra Mundial» e que «descreveu quatro casos de crianças muito semelhantes aos descritos antes, nos anos 20 do séc. passado, por uma russa [a psiquiatra Grunya Efimovna] Sukhareva, e penso mesmo que devia ser ela a ter o crédito deste quadro clínico».

Sukhareva «descreveu então um conjunto de seis casos de crianças, jovens, que, enfim, tinham desinteresse pela relação, comportamentos obsessivos, bom nível intelectual, muitas dificuldades nas perícias sociais com os outros e pouco jeito para a atividade motora fina e grupal também». Este artigo «da Sukhareva caiu no esquecimento e foi repescado depois pelo [pediatra austríaco Hans] Asperger, também esquecido, e acabou por ser retomado nos anos 1980 por Lorna Wing [médica psiquiatra britânica], que então batizou este quadro como Síndrome de Asperger; e foi ela, portanto, que reintroduziu este conceito na prática da saúde mental». Simultaneamente, «foi descrito por Leo Kanner [psiquiatra austríaco, radicado nos Estados Unidos] o Síndrome Autista, semelhante ao de Asperger, embora as crianças que o Kanner descreveu tivessem um quadro de apresentação mais grave».

Pedro Caldeira da Silva, pedopsiquiatra e chefe de equipa da UPI – Unidade da Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia

A eterna “discussão”

Desde essa altura que se «discute se a Síndrome de Asperger é uma variante menos grave do autismo ou se é mesmo uma condição diferente». Pedro Caldeira da Silva diz porém que considerar-se que «a Síndrome de Asperger é um sinal precoce de autismo é um disparate». «Enfim, Portugal teve uma ‘epidemia’ de Síndromes de Asperger erradamente, penso que por terem deixado de ser os pedopsiquiatras a fazerem o diagnóstico, e passarem a ser outros profissionais de Saúde», acusa, antes de enumerar os sinais a que os pais devem estar atentos o mais cedo possível na vida das crianças.

Em vez de «Perturbações do Espetro Autista» [que até 2013 se diagnosticava como Síndrome de Asperger], o clínico prefere o termo «Perturbação da Relação e da Comunicação», com «evolução e prognóstico muito abertos». No princípio, «não se sabe sequer se se vai desenvolver e, como é feito um diagnóstico precoce, aproveita-se uma idade em que os bebés têm muita plasticidade no cérebro, e portanto as experiências ajudam a modificar a maneira como as células no cérebro se ligam», explica, acentuando a importância de se intervir o mais cedo possível.

A intervenção «precoce modifica a forma de funcionamento do cérebro», afirma o chefe de equipa da UPI do Dona Estefânia. O ideal é as crianças «chegarem-nos com um ano de idade», quando os pais repararem que o bebé é silencioso. «Abrimos uma consulta em que pretendemos, antes de mais, não alarmar os pais; porque pode não ser nada, ou pode não ser nada de grave; ou pode ser alguma condição favorável. Abrimos uma consulta dos bebés silenciosos, porque os sinais são negativos neste aspeto, não incomodam: é um bebé muito silencioso.»

Valorizar os interesses da criança

Depois de sinalizada, a criança pode, portanto, ser ajudada a tornar-se independente. António Nabais, enfermeiro professor na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa e coordenador da Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, faz terapia de grupo e sociodrama com Aspergers. E na sua prática há um elemento de extrema importância: valorizar os interesses da criança, potenciá-los, e só em segundo grau tratar o resto: a convivência com o outro; que também é importante, mas secundário.

António Nabais, enfermeiro professor na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, coordena a Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, onde se faz terapia de grupo e sociodrama com Aspergers

«Interessa que os pais consigam identificar as características da criança no sentido de ser dada uma resposta o mais regulada possível», explica o professor, indo ao encontro dos interesses das crianças, não as contrariando. «Quando os miúdos têm um gosto, algum prazer em alguma área particular, é sempre uma boa forma de entrar em comunicação com eles, porque têm muito interesse naquela área. E por vezes pode haver interesses, competências, muito mais desenvolvidos do que outros e cai-se na tentação de não estimular estas situações e apostar-se onde há maior défice», o que é errado, desenvolve António Nabais.

«Onde há maior défice deve tentar chegar-se até a um nível regular funcional, ao qual chamaríamos normal. Ou seja, naquilo que está menos desenvolvido temos de conseguir desenvolver ao ponto de deixar de causar incapacidade à criança. Mas aquilo em que ela é boa temos de continuar a estimular para que ela seja realmente muito boa, porque é o que a motiva, é o que lhe dá prazer, é o que a faz continuar a desenvolver-se, a investir e a estar com prazer e com vontade na vida», diz.

As crianças com Síndrome de Asperger «conseguem adaptar-se»

Independentemente da discussão académica, para os pais não importa que nome tem o diagnóstico, se o filho é Asperger ou autista. E é sempre um choque receber a notícia. «Numa primeira fase, o receio dos pais é o de que as crianças fiquem dependentes para sempre», constata António Nabais, mas a boa notícia é que «não é verdade que a criança seja dependente toda a vida». As crianças com Síndrome de Asperger «conseguem adaptar-se». Apenas «chegam à independência de forma diferente, porque têm características diferentes das das outras crianças» e, sim, «conseguem autonomizar-se». Depois, «sobre aquelas projeções que os pais fazem sobre os filhos – terem uma namorada, casarem e constituírem família – isso vai decorrer do desenvolvimento da criança».

Miguel Palha, médico pediatra e diretor clínico do Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças

Na generalidade dos casos, estas crianças são diferentes. Nem inferiores, nem superiores. É como «dizer-se ‘aquele sujeito que ali vai tem o nariz muito grande’», assinala Miguel Palha. «Ele pode de facto ter um nariz muito, muito grande, mas isto é insuficiente», é apenas uma característica do indivíduo.

O que fazer

Comecemos «pelo que não deve ser feito, sobretudo em crianças muito pequenas»: «tratamentos que sejam educativos, isto é, que não tenham em conta esta vida emocional das crianças, e que tenham em conta só o ensinar», alerta Pedro Caldeira da Silva, pedopsiquiatra e chefe de equipa da UPI – Unidade da Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa.

«O trabalho das crianças pequenas é brincar.  Portanto, estas intervenções têm de ser feitas com o trabalho das crianças, a brincar, no interesse da criança, segundo os interesses delas. E portanto, o que não deve ser feito é insistir que ela esteja sentada a uma mesa a fazer uma tarefa qualquer. Isso, do nosso ponto de vista, não é adequado na infância – isto é contrário ao trabalho da criança, e o próprio termo floortime indica bem: tempo de chão, e portanto a intervenção deve ser feita no chão.»

«Só mais tarde, enfim, na altura da escola, se pode considerar adequado que haja intervenções educativas no sentido de que a criança tenha de aceitar fazer tarefas que lhe mandem fazer (que para elas não têm sentido nenhum, mas que a criança começa e acaba porque há uma senhora simpática que pede para fazer). Na idade pré-primária não faz sentido. Portanto, o que se aproveita é o ambiente natural da criança, as experiências normais da sua vida e se introduzem algumas técnicas e estratégias específicas do floortime para a ajudar a desenvolver – este é o princípio básico, e depois há a atividade sensorial, que é feita na terapia ocupacional, em ginásio, com baloiços, túneis, em que os miúdos recebem informação de vários órgãos dos sentidos ao mesmo tempo e vão organizando a experiência e a resposta. Há várias técnicas», resume o clínico.

Terapias de grupo e sociodrama com Aspergers

António Nabais, enfermeiro professor na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, coordena a Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, onde se faz terapia de grupo e sociodrama com Aspergers. «O sociodrama é uma terapia de grupo que nos permite simularmos relações» similares às da vida real, no contexto escolar, por exemplo. «O que fazemos é experimentar diferentes papéis, porque na escola estes miúdos estão sujeitos a algum maltrato ou bullying e não voltam a insistir após a rejeição, e tendem a isolar-se. Mas em contexto simulado podem viver estas coisas todas com as outras crianças e permitir-lhes estabelecer relações uns com os outros do ponto de vista emocional, e disponibilizarem-se para trocarem de papel; o que agora tem a liderança passa, num contexto de dramatização, a ter menos privilégios e vice-versa», elucida.

Projeto inovador na escola

«Regra geral, são os pais e as crianças que têm de se deslocar ao hospital e isso causa imensas dificuldades», regista António Nabais. Para minimizar a situação, a DGS – Direção-Geral de Saúde – financiou um projeto para a «intervenção no Agrupamento de Escolas da Baixa- Chiado».

«O que pretendemos é intervir num momento mais precoce. Fazemos uma avaliação clínica a todas as crianças do Primeiro Ciclo e conseguimos perceber quais são aquelas que estão em risco de vir a ter algum problema ou aquelas que já têm algum problema instalado. Havendo a concordância dos pais (antes e depois do diagnóstico), fazemos uma terapêutica de grupo na escola, em vez de ser no hospital. Os resultados obtidos foram bastante satisfatórios. Cerca de 35 a 40 por cento das crianças que nunca foram referenciadas têm ou estão em risco de virem a ter um problema de saúde mental e destas, após a intervenção, 60 a 70 por cento ficam bem; as que mantêm o problema são então referenciadas para uma intervenção terapêutica mais diferenciada, em contexto hospitalar, que requer outro acompanhamento.»

Este projeto foi premiado e pode vir a ser o futuro no tratamento de crianças com problemas psiquiátricos.

Aspergers famosos

Miguel Palha, pediatra diretor clínico do Centro Diferenças, explica que “a Síndrome de Asperger era a associação de dificuldades no relacionamento social, desinteresse, e comportamentos repetitivos, fixações em objetos ou temas”. “Havia como condição que a linguagem tinha de estar intacta, bem como o desenvolvimento cognitivo.

Ou seja, estávamos perante um sujeito com dificuldades no relacionamento social, desinteresse na reciprocidade e na interação social (comportamentos anómalos do ponto de vista da socialização) e comportamentos repetitivos. O autismo era similar, mas os sujeitos tinham também dificuldades na linguagem. Em 2013, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) vem dizer que não há défice linguístico (deixa de ser critério) no autismo; e que se houver tem de ser classificado em separado.

E então, o DSM-5 diz que a Perturbação do Espetro do Autismo é basicamente a Síndrome de Asperger.” Vários famosos bem sucedidos vivem com esta condição. O físico Albert Einstein, o ator Keanu Reeves e o futebolista Lionel Messi serão alguns desses nomes. Leonardo Da Vinci ou Bill Gates são outros dos alegadamente diagnosticados com Perturbação do Espetro do Autismo. A  condição impede uma vida normal? Não. Apenas diferente.

Reportagem: Luís Martins;
Fotos: Tito Calado

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