Projeto Rua nasceu para tirar crianças da rua e hoje ajuda jovens a alcançar sonhos

O “Projeto Rua” nasceu há 35 anos por causa dos meninos de rua, mas hoje estes são casos raros e o Instituo de Apoio à Criança (IAC) dedica-se a ajudar jovens como David a atingir “os sonhos mais longos”.

Projeto Rua nasceu para tirar crianças da rua e hoje ajuda jovens a alcançar sonhos

David estava no sétimo ano, mas “não estava bem encaminhado na escola”, com aulas que achava “cansativas” e “miúdos” que não eram da sua idade, quando surgiu a Escola Segunda Oportunidade (E2O) do Lumiar, em Lisboa, um de três Centros de Educação e Formação (CEF) que fazem parte do Projeto Rua “Em Família para Crescer”.

Esta escola serve para resolver situações de risco, explicou à Lusa a coordenadora Ana Isabel Caridas, e, juntamente com as E2O de Marvila e Santa Clara, “pretende dar resposta às situações de insucesso escolar destes territórios”, depois de um diagnóstico na cidade ter indicado que estes eram os que exigiam uma “intervenção prioritária”.

As E2O integram o sistema educativo nacional, acompanham jovens entre os 15 e os 18 anos com perfil de insucesso escolar, de “famílias multidesafiadoras e com situações sociais que requerem apoio”, que podem ser sinalizados ao IAC pelos agrupamentos de escolas, mas também por outras entidades.

Os jovens podem completar o 6.º e o 9.º anos de escolaridade e, além da componente escolar e do treino de competências pessoais, é-lhes dada a oportunidade de fazerem um estágio profissional, depois de identificarem a sua área de interesse.

Para David, “esta escola é mais fixe” e agora já reconhece que “uma pessoa sem escola não é nada”. Admite que tem “bué de sonhos por realizar” e uma meta: “Só quero ter um futuro estável sem essa vida de bairros”.

Quer continuar a estudar, fazer o 12.º ano, fazer um estágio profissional na área da informática e continuar a seguir os conselhos dos pais.

“Ter sonhos curtos, para depois atingir os mais longos”, afirma, explicando que os sonhos mais curtos são, por exemplo, acabar o 9.º ano, depois pensar no 12.º, a seguir tirar a carta de condução e depois procurar um trabalho.

Sonhos curtos para conseguir alcançar o mais longo: “Poder dar uma vida melhor aos meus pais. Já passaram por muito na vida, quero tentar dar uma casa para cada um e tentar que eles não trabalhem, que eu consiga cuidar deles”.

Carolina chegou à E2O em setembro, depois de ter chumbado duas vezes no nono ano. Convenceram-na com um tipo de ensino mais prático, com menos aulas e com a possibilidade de fazer um estágio profissional.

Voltou a ter gosto por estudar, quer conseguir a certificação do nono e depois “estudar até à faculdade, para tirar turismo”.

Para Carolina fez diferença o facto de haver só duas turmas, num total de 36 alunos, de o estudo ser mais apoiado e, passados seis meses, reconhece aqui uma segunda família.

“Eu vejo que melhorei muito, aprendi muita coisa aqui. Melhorei como aluna e como pessoa”, reconhece, admitindo que gosta muito da escola e do método de ensino, aos quais dá nota “10”.

Ana Isabel Caridas diz que a nota “10” se explica com o trabalho diário e permanente que os técnicos fazem com estes jovens, no qual “é muito trabalhada a questão da relação e da confiança”, e que “é também a metodologia das outras equipas do projeto rua”.

Para a responsável, a escola serve para abrir horizontes, mostrar aos jovens “que o destino deles não está escrito, não está traçado” e que “pode estar nas mãos deles fazer a diferença e seguir em frente”.

Ana Caridas diz que o desafio está no facto de não haver dois dias iguais e em conseguir “ler o jovem de manhã e perceber se vai ser um dia bom ou um dia desafiante”, sublinhando que são jovens que têm “uma grande necessidade de colo e de serem ouvidos”.

Além das Escolas de Segunda Oportunidade (E2O), o Projeto de Rua do IAC tem um Centro de Desenvolvimento e Inclusão Juvenil, com foco nos jovens que fogem de casa ou de instituições, sendo que estas duas componentes integram o “Nível do Recuperar”.

No Centro de Desenvolvimento e Inclusão Juvenil há uma equipa que atua em contexto de emergência, e que faz ‘giros’ pela cidade de Lisboa para perceber se há novos casos de jovens que estejam na rua e necessitem ser sinalizados, ou à procura de casos concretos que tenham fugido de casa ou de uma instituição.

A Lusa acompanhou um ‘giro’, que tem um percurso definido e passa pelo Cais do Sodré, Saldanha, Gare do Oriente e zona de Santa Apolónia, e naquele dia havia a missão de tentar encontrar uma jovem de 15 anos, que teria fugido de casa da mãe, no Alentejo, por causa do namorado, e vindo para Lisboa.

Alguém a teria visto na estação de comboios de Sete Rios e essa acabou por ser a primeira paragem do ‘giro’, que acabou já perto da uma da manhã sem que ela tivesse sido encontrada ou detetado algum menor que, eventualmente, pudesse estar desacompanhado ou a viver na rua.

Aqui, de certa forma, está a génese do “Projeto Rua”, criado em 1989 para combater o fenómeno dos meninos de rua, que por essa altura deambulavam pelas ruas da Baixa de Lisboa e dormiam em cima das grelhas do metropolitano, “visíveis aos olhos de toda a gente”.

Hoje o fenómeno alterou-se e a equipa dedica-se a procurar nas ruas da cidade os miúdos que fogem de instituições ou de casa, fazendo ‘giros’ quinzenais que habitualmente são feitos ao final da tarde, início da noite.

A coordenadora da equipa, Conceição Alves, explica que os ‘giros’ tanto servem para fazer diagnóstico de possíveis novos casos, como atuam sobre denúncia, quando lhes chega ao conhecimento casos concretos de jovens que fugiram, algumas das vezes através da Linha SOS Criança Desaparecida.

Os dados estatísticos do IAC, relativos a 2023, mostram que as fugas foram o motivo de contacto “mais prevalente” entre os 116 telefonemas feitos, com 61% dos casos referentes a fugas de instituições.

A estratégia para conseguir abordar um jovem que a equipa detete na rua começa por uma “conversa simples”, para que, a partir daí, se construa uma “relação de afeto, de confiança e de proximidade”.

“Vamos tentando entender e perceber o que é que o levou a fazer fuga, porque é que se encontra ali”, relata Conceição Alves, salvaguardando que a metodologia de trabalho assenta em ir ao encontro do jovem, com o objetivo de que ele regresse a casa ou à instituição da qual fugiu.

Segundo a responsável, as fugas são muitas vezes motivadas por brigas ou faltas de comunicação entre família, salientando que em causa estão jovens a quem escola “não diz grande coisa”, que depois “se vão embrenhando na rua e conhecendo pessoas mal-intencionadas”, ficando “expostos a muitos riscos”, como por exemplo o tráfico de seres humanos ou a exploração ou abuso sexual.

Recorda o caso de uma jovem que quando foi encontrada só se lembrava de “acordar numa casa abandonada perto da Expo, amarrada”.

Conceição Alves explica que “muitas vezes a fuga é uma escapatória” e que por trás há uma série de problemas associados, refutando, por outro lado, que este fenómeno só aconteça em “famílias desorganizadas” ou com problemas financeiros, já que “é transversal às diferentes classes sociais”.

Sendo jovens “expostos à vulnerabilidade”, a responsável elucida que é preciso fazer um plano de intervenção, por fases e com pequenos passos, “respeitando o ritmo” de cada um, apontando que uma das grandes dificuldades está na mobilidade destes miúdos, que “conseguem ir de um sítio para outro com muita facilidade”.

Ainda assim, no ano passado, dos 30 jovens que fugiram, a equipa de Rua conseguiu encontrar 15.

Num terceiro nível de intervenção, e com uma atuação na prevenção de situações e comportamentos de risco, existe ainda o Centro de Apoio Comunitário, com sede no Bairro do Condado.

A responsável pelo centro explica à Lusa que o IAC foi para a comunidade “precisamente por causa das crianças de rua”.

“O propósito era obviamente retirá-las da rua e isso obrigou a que as equipas fossem às comunidades de onde essas crianças eram provenientes e esta era uma dessas comunidades onde uma grande parte das crianças provinha”, adianta Carmen Lopes.

A intervenção foi sendo feita também em outras comunidades, mas esta foi a única que perdurou no tempo, já que continuam a “identificar crianças e jovens em situação de risco”, apesar de já não com a especificidade da rua.

“Consideramos que o nosso trabalho continua a ser válido, que faz falta e que faz sentido”, defende.

Para Cristiana, que vai ao centro há seis anos, levada por uma colega que lhe falou nas atividades, nos passeios e nos projetos, a quarta-feira tornou-se o dia em que aprende e conhece pessoas diferentes. Onde estuda política ou sexualidade e visita locais de religiões diferentes ou onde aprendeu a respeitar o outro.

“Nestes seis anos mudei como pessoa. Evolui mentalmente. Eu acho que é mais a coisa do respeito, da maturidade, aceitar coisas que são diferentes das minhas, crescer”, resume.

Segundo Carmen Lopes, o trabalho envolve sobretudo crianças e jovens a partir do segundo ciclo do ensino básico, que vão para o centro depois das aulas.

A maior parte das crianças e jovens tem “muitas dificuldades”, com casos de insucesso e abandono escolar e, por isso, a educação “é um dos principais focos”. Há duas tardes dedicadas ao apoio ao estudo e à quarta-feira programa de treino de competências pessoais e sociais, como por exemplo autoestima ou relacionamento interpessoal.

No espaço, há computadores, matraquilhos ou jogos de tabuleiro e à sexta-feira a hora de expressão dramática.

“Estas atividades têm como propósito não só a prevenção, mas fazer com que eles adquiram competências e consigam seguir um percurso o mais direto possível, sem desvios”, aponta Carmen Lopes.

Desde a sua criação em 1989, o Projeto de Rua acompanhou 39.808 crianças e jovens, 1.659 em 2023, entre todas as três valências.

SV // JMR

By Impala News / Lusa

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