Como apagar o rasto de destruição deixado por Bashar al-Assad na Síria

O reinado brutal de 54 anos da família Assad na Síria parece ter chegado ao fim. Aparentemente, Bashar al-Assad renunciou e deixou a Síria. Mas o que deixou para trás e o que acontece agora no país?

Como apagar o rasto de destruição deixado por Bashar al-Assad na Síria

O reinado brutal de 54 anos da família Assad na Síria parece ter chegado ao fim. Em questão de dias, as forças da oposição tomaram a principal cidade de Aleppo antes de avançarem para sul, para outras áreas controladas pelo governo de Bashar al-Assad, como Hama, Homs e, finalmente, em 7 de dezembro de 2024, a capital, Damasco.

A ofensiva foi ainda mais surpreendente considerando que a guerra civil de 13 anos estava praticamente estagnada desde o cessar-fogo de 2020 mediado pela Rússia e pela Turquia. Vários relatórios sugerem que o presidente renunciou e deixou o país, tendo recebido exílio na Rússia. Mas o que deixou Assad para trás e o que esperar-se que aconteça agora?

Como especialista em segurança no Oriente Médio, Sefa Secen (professor de Estudos Internacionais e Globais da Universidade de Nazaréque) acredita que “a capacidade das forças de oposição de manterem a unidade será crítica na transição para uma Síria pós-Assad”. Desde que a guerra civil começou em 2011, as muitas fações de oposição sírias foram fragmentadas por diferenças ideológicas e pelos interesses de apoiantes externos – “fator que se mantém, apesar da atual vitória”.

Enquanto isto, a rápida mudança de sorte na guerra civil na Síria “coloca sérias questões aos países que apoiaram um lado ou outro no conflito”. Para o Irão e a Rússia, a queda do seu aliado Assad “prejudicará as aspirações regionais”. Para os apoiantes de elementos da oposição – em especial a Turquia, mas também os EUA, que mantêm presença militar na Síria – “também haverá desafios”.

Medos de um “sucesso catastrófico”

Irão, EUA, Rússia e Turquia foram “atores cruciais durante” a guerra civil na Síria. A recente ofensiva da oposição “ocorreu quando os três principais aliados de Bashar al-Assad [Rússia, Irão e o Hezbollah do Líbano] tinham atingido o limite”. O foco da Rússia na Ucrânia e os reveses do Irão com os ataques israelitas “limitaram a sua capacidade de fornecer apoio robusto a Assad”, enquanto o Hezbollah “parecia hesitante em comprometer mais combatentes, como havia feito antes”.

Por isso, em 2 de dezembro, enquanto as forças da oposição se movimentavam, “a Rússia começou a retirar ativos navais da sua base estratégica no Mediterrâneo, em Tartus, Síria”. Esta erosão do apoio externo “minou substancialmente” a capacidade de Assad de reagrupar-se para “montar uma contraofensiva eficaz”.

Os EUA “darão sem dúvida as boas-vindas a esta influência russa e iraniana diminuída na Síria”. Mas “a preocupação em Washington foi já ventilada sobre um cenário de ‘sucesso catastrófico‘ no qual Assad é substituído por um grupo islâmico que muitos no Ocidente veem como terroristas”.

“Foram membros do grupo islâmico Hayat Tahrir al-Sham a liderar grande parte dos ganhos da oposição na Síria, combatendo ao lado do Exército Nacional Sírio apoiado pela Turquia”, situa Sefa Secen.

“E embora Hayat Tahrir al-Sham não tenha atacado diretamente as tropas norte-americanas estacionadas no nordeste – sob o controlo das Forças Democráticas Sírias lideradas pelos curdos – a instabilidade e o potencial de confrontos entre fações da oposição e aliados dos EUA podem aumentar os riscos” para os 900 militares norte-americanos baseados na Síria.

Paisagem fragmentada

O fato de diferentes grupos de oposição tomarem o controlo de várias áreas outrora controladas pelo governo “aponta para um fato crucial: a Síria está de facto dividida”. O noroeste é controlado pelo islâmico Hayat Tahrir al-Sham e pelo Exército Nacional Sírio, apoiado pela Turquia. O nordeste está sob as Forças Democráticas Sírias lideradas pelos curdos, apoiadas pelos Estados Unidos.

Apesar do objetivo partilhado de expulsar Assad e da ofensiva conjunta em Alepo, os conflitos entre Hayat Tahrir al-Sham e o Exército Nacional Sírio são frequentes. Hayat Tahrir al-Sham, liderado por Abu Mohammad al-Golani, “visa afirmar o controlo sobre as áreas asseguradas pela oposição, incluindo as administradas atualmente pelo Exército Nacional Sírio”.

O Exército Nacional Sírio e Hayat Tahrir al-Sham mantêm “relações complexas, muitas vezes conflituantes”, com as Forças Democráticas Sírias, “moldadas por diferenças ideológicas, territoriais e estratégicas”. O Exército Nacional Sírio “apoiado pela Turquia” envolve-se frequentemente em confrontos diretos com as Forças de Defesa Sírias, que a Turquia vê como “uma organização terrorista e um desdobramento do Partido dos Trabalhadores do Curdistão”, que tem lutado no sul da Turquia “há mais de quatro décadas”.

Assim, “a fragmentação interna da oposição pode enfraquecer a sua capacidade de trazer estabilidade à Síria a longo prazo”, alerta o professor.

Problemas de ajustamento

Queda de Assad "terá grandes por isso implicações para os países que com interesses na região"
Queda de Bashar al-Assad “terá grandes por isso implicações para os países que com interesses na região”

A queda de Assad “terá grandes por isso implicações para os países que com interesses na região”. A grande estratégia do Irão em preservar o Crescente Xiita – ligando Teerão a Beirute através de Bagdade e Damasco e, neste processo, combatendo fações islâmicas sunitas – “falhou”. Para Washington, a saída de Assad “não corresponde necessariamente a qualquer resultado desejado”.

Os EUA priorizaram “equilibrar, conter e eventualmente diminuir a influência russa e iraniana” na Síria. Até recentemente, contudo, “isto não significava a remoção de Assad”. O governo Biden deu até a entender, no início de dezembro, que estaria preparado para “suspender as sanções à Síria se Assad cortasse laços com o Irão e o Hezbollah”.

Existiram igualmente contactos sobre o governo a possibilidade de Bashar al-Assad aliar-se às Forças Democráticas Sírias apoiadas pelos EUA. Todavia, “à medida que, cidade após cidade, caía para Hayat Tahrir al-Sham e o Exército Nacional Sírio apoiado pela Turquia, tornou-se cada vez mais improvável que o grupo curdo se alinhasse com as forças enfraquecidas de Assad”. Especialmente porque “as próprias forças curdas alcançaram ganhos territoriais significativos“.

As Forças Democráticas Sírias “vão precisar de adaptar-se, em resposta à queda de Assad” – o que será “duplamente verdadeiro se, como muitos antecipam e o presidente eleito Donald Trump insinuou, os EUA se retirarem da Síria”. Atualmente, estão no leste da Síria 900 soldados dos EUA, ao lado de uma base militar em Al-Tanf, localizada perto das fronteiras com o Iraque e a Jordânia.

No caso de os norte-americanos se retirarem, as Forças Democráticas Sírias e a região autónoma que administram – conhecida como Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria – “precisariam de negociar a sua autonomia com as duas fações da oposição e com a vizinha síria, Turquia”.

Aliança curda e islâmica

O papel precário das Forças Democráticas Sírias na transição para a era pós-Assad pode constituir uma dor de cabeça significativa em termos de política externa para os EUA
O papel precário das Forças Democráticas Sírias na transição para a era pós-Assad pode constituir uma dor de cabeça significativa em termos de política externa para os EUA

Dado o histórico de incursões militares e de campanhas da Turquia contra as Forças Democráticas Sírias em cidades do norte, como Afrin e Kobani, “o grupo curdo pode precisar de aliar-se a algumas fações da oposição, provavelmente Hayat Tahrir al-Sham, caso os EUA se retirem”.

Hayat Tahrir al-Sham tem “evitado amplamente” antagonizar as Forças Democráticas Sírias. “De fato, os esforços de Hayat Tahrir al-Sham para se reformular e moderar-se são notáveis. “Especialmente dadas as suas origens como um grupo salafista com laços com a Al-Qaeda”, aponta Sefa Secen.

Ao adotar “uma série de políticas, como a concessão de uma amnistia para o pessoal do exército sírio, facilitando acordos de evacuação e usando a linguagem de construção de uma estrutura de governança étnica e religiosamente diversa”, o grupo islâmico “tentou suavizar a sua imagem de linha dura e ganhar o favor – ou, pelo menos, a neutralidade – de partes interessadas internacionais, como os EUA”. No entanto, “o ceticismo sobre os objetivos de Hayat Tahrir al-Sham persiste”.

Cálculos estratégicos para a Turquia

A posição da Turquia sobre a Síria é após a queda de Bashar al-Assad “igualmente complexa”. A Turquia abriga 3,6 milhões de refugiados sírios – o país que mais hospeda refugiados no mundo. Uma crise económica prolongada e um crescente sentimento antirrefugiados “pressionaram o presidente turco Recep Tayyip Erdoğan a sinalizar uma disposição de envolver-se com Assad antes da ofensiva” da oposição.

A esperança da Turquia “era a de que as relações normalizadas com a Síria ajudassem a facilitar o regresso dos refugiados e abordassem as preocupações sobre um possível estado curdo no nordeste da Síria”. Assad rejeitou no entanto estas propostas e “intensificou os ataques aéreos em Idlib, desencadeando novas ondas de deslocados” junto à fronteira turca.

A política da Turquia para a Síria está também “intimamente ligada” ao seu renovado processo de paz com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão. As conversações “incluem alegadas discussões sobre a potencial libertação do líder preso do Partido dos Trabalhadores do Curdistão”, Abdullah Öcalan – “cuja influência é profunda nas regiões lideradas pelos curdos no norte da Síria.

Queda de Bashar al-Assad: a oportunidade para uma nova Síria

O aparente fim do governo da família Assad após meio século de opressão brutal significa “um momento crucial para a Síria”. Oferece uma oportunidade de “reconstruir a nação sobre bases de inclusão, pluralismo e estabilidade”.

Alcançar esta visão “depende da capacidade das fações da oposição de navegarem pelos imensos desafios da transição” – que inclui “promover a unidade entre grupos diversos, abordar queixas de anos de conflito e estabelecer estruturas de governança que reflitam a diversidade étnica, religiosa e política da Síria”. “Não será tarefa fácil”, considera o professor de Estudos Internacionais e Globais Sefa Secen da Universidade de Nazaréque.

The Conversation

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