Enfermeiro em greve de fome: «Fico enquanto o meu corpo permitir»

Carlos Ramalho, presidente de um dos sindicatos de enfermeiros que convocou a greve cirúrgica, iniciou hoje uma greve de fome. O sindicalista e enfermeiro explica ao Portal de Notícias como estão a decorrer os primeiros momentos da «decisão mais difícil» da sua vida.

Carlos Ramalho, presidente do Sindicato Democrático dos Enfermeiros Portugueses (Sindepor), começou às 12h00 desta quarta-feira, dia 20 de fevereiro, uma greve de fome por tempo indeterminado, nos jardins junto ao Palácio de Belém. Com «determinação inabalável», o sindicalista de 51 anos garante que só sairá da frente da residência oficial do Presidente da República «quando o Governo decidir voltar às negociações com os enfermeiros». «O que me levou a tomar esta decisão extrema foi também o extremismo por parte do Governo ao proibir os enfermeiros de fazerem greve. Houve uma manobra política muito feia com o objectivo de descredibilizar a nossa classe profissional, o nosso trabalho, os nossos objectivos. E houve uma grande manipulação da opinião pública para voltar o povo contra os enfermeiros», começa por explicar. A união «de uma vez por todas» destes profissionais da Saúde é o segundo objectivo desta abstinência, salienta o protestante.

«Estou aqui a cumprir aquilo que prometi aos enfermeiros»

Rodeado de um grupo de cerca de 15 apoiantes, maioritariamente enfermeiros, o presidente do Sindepor conta que o parecer da Procuradoria-Geral da República, que considerou a greve dos enfermeiros ilícita, foi a gota de água. Mesmo «sem grande preparação», anunciou a greve de fome. «A minha indignação começou a ser demasiado grande. O parecer da Procuradoria-Geral da República ainda nos veio impedir de fazermos a nossa luta, de fazermos greve. Há aqui situações muito graves sobre o que são os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos, nomeadamente dos enfermeiros.»

Ao contrário do que afirmou na conferência de imprensa, na qual anunciou esta manifestação, Carlos Ramalho diz que não se considera mártir, mas antes um líder a dar o exemplo. «Não sou um mártir. Sou o líder de um sindicato que prometeu aos enfermeiros que ia lutar até às últimas consequências pela nossa classe profissional. Enquanto líder, tenho de dar o exemplo e de tomar uma posição. Estou aqui a cumprir aquilo que prometi aos enfermeiros. Vim lutar por eles até que as minhas forças se esgotem.»

«Mantas? Não tenho nada. Tenho só uma determinação muito grande. Vou ficar aqui como um sem-abrigo»

Como quem doa o corpo à luta, o sindicalista esclarece que não delineou qualquer plano para avançar com a «decisão mais difícil» da sua vida: fazer greve de fome. Com algumas garrafas de água e um sobretudo, Carlos Ramalho confessa não ter mantas ou outros confortos para «sobreviver» a esta manifestação. No que diz respeito à higiene e a necessidades biológicas, o enfermeiro do Hospital de Évora considera que ainda «não tinha pensado nisso» e que essas questões iriam ser «resolvidas na altura». «Quando a vontade é tanta, deixamos isso para o momento. Vou ingerir todos os líquidos necessários para me conseguir manter. Vou ficar aqui enquanto o meu corpo permitir. Não sei como é que isto vai acabar».

«Os enfermeiros estão habituados a fazerem grandes sacrifícios. Trabalhamos em condições muito precárias»

Apenas com a última refeição no estômago, o sindicalista também compara a greve de fome que está a realizar com a situação diária de muitos enfermeiros. Neste sentido, por tudo o que já sofreu enquanto enfermeiro, mostra-se confiante nas suas capacidades física e emocional para suportar o desafio. «Os enfermeiros estão habituados a fazerem grandes sacrifícios. Trabalhamos em condições muito precárias, muitas vezes quase sozinhos. Já estamos habituados a grandes dificuldades. Aqui é uma situação diferente, mas apesar de ser sindicalista também sou enfermeiro e prestador de cuidados. De alguma forma, já estava preparado para fazer sacrifícios. Já o fazia pelos utentes do Serviço Nacional de Saúde e agora vou fazê-lo pela minha classe profissional. Nós já estamos habituados a sofrer.»

Ainda nas primeiras 24 horas da greve de fome, o presidente da Sindepor diz que «está tudo a correr bem» e que quando começar a sentir os primeiros sinais da privação alimentar irá concentra-se na causa em que acredita «de coração». «Há muitos enfermeiros que durante um turno inteiro não têm tempo para almoçar ou jantar e só têm tempo para comerem depois de saírem do trabalho. Vale a pena sofrer quando se está a defender uma causa em que se acredita.»

Apesar de não querer tocar no assunto, o impacto desta decisão também se manifestou na sua vida privada. Com os olhos marejados, o presidente da Sindepor ainda confessa que esta greve se traduz num momento difícil para a família. «Não me aconselhei com eles [família] para tomar esta decisão. Ficaram chocados com a situação. Estão a sofrer também. Não foi uma decisão fácil. Foi a decisão mais difícil da minha vida.» O sindicalista deixa ainda uma mensagem de união e força para todos os enfermeiros. «Quero pedir aos enfermeiros que sigam o meu exemplo. Que lutem. Que nunca desistam, porque vale a pena lutar pelo aquilo em que acreditamos».

Bastonária da Ordem dos Enfermeiros aparece para prestar apoio e solidariedade

Eram quase 16h00 quando Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, se despediu de Carlos Carvalho com um abraço e a promessa de que voltaria em breve para ver como estava tudo a correr. De acordo com declarações prestadas ao nosso site, esta é, para a Ordem dos Enfermeiros, uma situação alarmante que podia ter sido evitada. «Aqui, para a Ordem dos Enfermeiros, não está um sindicato. Está um enfermeiro que é membro da Ordem e que merece o nosso respeito e solidariedade. Dissemos sempre que não queríamos que esta situação chegasse a medidas extremas. Esta é uma delas. Preocupa-nos muito isto ter chegado a este ponto. Não se compreende a intransigência do Governo em não querer negociar.» Ana Rita Cavaco ainda salienta que está na altura de o Governo ceder e entrar em negociações, «como tem feito com outras classes profissionais».

Até ao momento, Carlos Carvalho esclarece ainda que não foi abordado por ninguém da Presidência ou do Governo. Por enquanto, o sindicalista conta com o apoio da Ordem dos Enfermeiros, do presidente do Sindicato dos Enfermeiros, José Azevedo, e de vários profissionais que se têm dirigido aos jardins de Belém. «O Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, curiosamente, ainda não se pronunciou. Garanto-lhe que é porque não estão com os enfermeiros», acrescenta o presidente da Sindepor.

Em solidariedade com Carlos Carvalho, Duarte Gil Barbosa, enfermeiro no Hospital de S. João, no Porto, anunciou que vai também iniciar uma greve de fome a partir desta sexta-feira, dia 22 de fevereiro, em frente à Assembleia da República.

A greve cirúrgica foi convocada pela Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE) e pelo Sindicato Democráticos dos Enfermeiros (Sindepor) em dez centros hospitalares, até 28 de fevereiro, depois de uma paralisação idêntica de 45 dias no final de 2018. As duas greves foram convocadas após um movimento de enfermeiros ter lançado recolhas de fundos numa plataforma ‘online’ para financiar as paralisações, conseguindo um total de 740 mil euros. Os principais pontos de discórdia são o descongelamento das progressões na carreira e o aumento do salário base dos enfermeiros. A requisição civil foi contestada pelo Sindepor no Supremo Tribunal Administrativo, que se deverá pronunciar nos próximos dias. No final da semana passada, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República considerou que a greve é ilícita, um parecer que foi de imediato homologado pela ministra da Saúde, ordenando a marcação de faltas injustificadas aos enfermeiros em greve a partir de hoje. A ASPE pediu a suspensão imediata da paralisação, mas o Sindepor vai mantê-la.

Reportagem WiN: Mafalda Tello Silva; Fotos: Paula Alveno

 

 

 

 

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