Brasil: como os populistas usam a religião para vencerem eleições

Em 2 de outubro, o Brasil vai a eleições para escolher um novo Presidente. A probabilidade de vitória cai sobre dois rostos populistas com a religião como trunfo – um que esteve a braços com a Justiça e outro muito tentado pela justiça pelas próprias mãos: Lula e Bolsonaro.

Brasil: como os populistas usam a religião para vencerem eleições

As eleições presidenciais brasileiras de 2 de outubro oferecem-nos “um vislumbre de como os líderes populistas do século XXI estão a usar a religião para entusiasmar as bases de apoio”, constata Mathew Guest, professor de Socialogia e Religião da Universidade de Durham.

O atual líder de direita Jair Bolsonaro chegou ao poder em 2018 com o apoio de eleitores cristãos evangélicos que se entusiasmaram com o seu conservadorismo social. Algumas sondagens sugerem que este apoio tem vindo vindo a desvanecer-se, pelo que Bolsonaro continua a cortejar o apoio evangélico. Enquadrou as eleições como uma batalha entre o “bem” temente a Deus e o “mal” da oposição e, em 13 de agosto de 2022, era objeto de orações no comício da Marcha por Jesus, no Rio de Janeiro, entre milhares de apoiantes evangélicos. O candidato da oposição e ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está a tentar reconquistar estes mesmos votos através da invocação de linguagem religiosa, influenciado pela forma como Bolsonaro reformulou o cenário político.

“A verdade é que tudo é mais uma questão de números do que propriamente de devoção genuína. Os protestantes evangélicos representam cerca de um terço da população brasileira (estimado em cerca de 70 milhões de pessoas) – mas é também uma questão de estilo político”, diagnostica Guest. Bolsonaro procura o eleitor evangélico conservador porque “precisa do voto deles, mas também porque a linguagem e os valores se alinham com a sua mensagem populista”. “Desse modo, a agenda conservadora pró-família [que inclui visões negativas da homossexualidade e do aborto] é central para a política de Bolsonaro.”

Os políticos populistas adotam por norma um “estilo distinto”. “São predominantemente nacionalistas, alegando representar a verdadeira vontade do povo, mas ainda assim fazem-no “através da divisão da sociedade em campos opostos: os a favor e os contra”, sem zonas cinzentas. Este alinhamento do populismo de direita a uma base cristã não se restringe apenas ao Brasil. “Vêmo-lo no autoritarismo otimista de líderes como o ex-presidente dos EUA Donald Trump, a líder de extrema direita francesa Marine le Pen e o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán.”

De acordo com os sociólogos Andrew Whitehead e Samuel Perry, “a ascensão de Trump ao poder coincidiu com um aumento do nacionalismo cristão“. Descrevem o nacionalismo cristão como uma “estrutura cultural – uma coleção de mitos, tradições, símbolos, narrativas e sistemas de valores – que idealiza e defende uma fusão do cristianismo com a vida cívica norte-americana”.

No estudo, Whitehead e Perry descobriram que os cidadãos norte-americanos que mais apoiavam o nacionalismo cristão eram mais propensos a apoiar “tipos autoritários de liderança, modelos ‘tradicionais’ de família e uma compreensão da identidade norte-americana que privilegia aqueles que são cristãos, e brancos”. “E, portanto, mais propensos a votar em Trump em 2016.” Bolsonaro, – o Trump dos Trópicos – é admirador declarado do ex-presidente dos EUA.

Na Índia, Narendra Modi permaneceu um forte defensor do nacionalismo hindu durante o seu mandato como primeiro-ministro. Na Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, presidente ou primeiro-ministro durante a maior parte dos últimos 20 anos, reuniu o populismo islâmico. O Partido da Justiça e Desenvolvimento de Erdoğan afirma defender os valores da maioria muçulmana da Turquia contra a sua elite secular.

A ligação entre religião e populismo “é, em parte, uma questão de retórica”, esclarece Mathew Guest. O populismo “favorece a linguagem das distinções binárias – verdade e falsidade, certo e errado, nós e eles, cidadão e imigrante”. “Certas formas de religião organizam o mundo em categorias similarmente dualistas, baseadas na crença de que o universo é divinamente ordenado para ser assim“.

Os populistas também afirmam apelar diretamente à vontade do povo, rejeitando a autoridade das elites, atacando a comunicação social, o establishment político, as universidades, a intelectualidade e as grandes empresas. O populismo nem sempre está associado à religião e nem sempre os populistas usam linguagem religiosa. “Mas a ligação é forte, mesmo que nem sempre seja simples”, diz o sociólogo. Por exemplo, “a religião não é universalmente adotada pelos populistas como aliada”.

Em toda a Europa, o sentimento anti-islâmico tem sido invocado por movimentos nacionalistas de direita. O partido de Marine le Pen adotou uma campanha pela “desislamização” da França, apresentando os muçulmanos como ameaça à segurança e uma presença cultural estranha, num “claro exemplo de que a religião serve como o marcador de quem não pertence”.

Coligações de movimentos populistas religiosos encontraram causa comum na sua oposição ao que é apresentado como uma agenda neoliberal. “A recente aparição de Orbán na Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) no Texas é uma ilustração impressionante desse facto”. O CPAC tornou-se “num importante ponto de encontro para os nacionalistas cristãos nos EUA, e a reunião deste ano culminou no discurso de encerramento de Trump”.

Tal como Trump, Orbán caracteriza as suas ambições políticas como uma luta contra os “inimigos da liberdade”, uma “guerra cultural” com as forças do liberalismo “renascido”. “Dirigindo-se aos delegados do CPAC, descreveu a Hungria como “uma nação velha e orgulhosa, mas do tamanho de David, sozinha contra o Golias globalista“.

A utilização de imagens bíblicas por Orbán não é único entre os populistas. Trump “foi comparado por alguns apoiantes ao rei David: um líder imperfeito, mas ungido”. “Usou a causa cristã evangélica como argumentação para algumas das suas decisões enquanto presidente. Usou o poder executivo para cortejar o voto cristão conservador, com consequências monumentais para o povo norte-americano.”

Durante os quatro anos em que esteve no cargo, nomeou três juízes para a Suprema Corte dos EUA, inclinando a balança para a direção conservadora e reforçando a sua posição com a direita cristã. Um dos resultados desta manipulação foi a polémica derrota da lei Roe v Wade – decisão que protegia o direito das mulheres norte-americanas ao acesso ao aborto, que vinha já de 1973.

O uso da religião para reforçar a ambição política “não é novidade”. O estudo de Mathew Guest sugere aliás que “que nos últimos anos a religião foi usada como capital político de uma forma distinta entre os populistas”. “Estamos a testemunhar o uso estratégico e cínico da religião como meio de promover agendas nacionalistas e conservadoras.” Agendas que “ganham força justamente por causa das semelhanças ideológicas entre o populismo e certas formas de religião que aspiram a transformar a ordem social”.

Ainda não é claro como estas mudanças influenciam as comunidades religiosas ao nível das bases, “mas onde os alinhamentos com as tradições religiosas dão frutos políticos – como no Brasil, nos EUA e na Turquia –, podemos esperar que aqueles que procuram o poder continuem a tentar a religião como meio para atingirem os seus próprios fins”.

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