Francisco Chaló: «Um treinador é um trabalhador do mundo»

O treinador português Francisco Chaló rumou à Argélia para assumir o comando do Paradou Athletic. Transformou-se num fenómeno no país e já há grandes de olho nele.

Francisco Chaló, treinador de futebol, rumou à Argélia para assumir o comando do Paradou Athletic e transformou-se num fenómeno no país. Os jogadores do clube mais recente na I Liga, sem adeptos e sem campo próprio, praticam um futebol tiki-taka, elogiado além-fronteiras. Em entrevista ao Portal de Notícias do Grupo Impala, Chaló revela como chegou ao lugar de Melhor Treinador Estrangeiro na Argélia.

Começou, no futebol, aos 13 anos. Que experiências mais recorda dessa fase?

Sim, é verdade. Contudo, comecei no desporto na natação (aos 10 anos) e tive uma experiência no andebol. Mas o futebol era a grande paixão. Recordo, naturalmente, com grande carinho e nostalgia essa altura, traduzida numa série de experiências novas, nos hábitos e no contacto social. O sentido colectivo foi, sem dúvida alguma, algo que se codificou em mim e que me preparou para toda a vida. Como episódio curioso, posso relatar o que seria hoje a maior aberração, mas que na época era comum. No treino e no jogo não era permitido ingerir líquidos. Agora, imagine-se, calor imenso, esforço máximo e nem a um gole de água tínhamos acesso. A frase que proferi na altura está gravada na memória até hoje e que foi a seguinte: «…é a primeira vez que não me deixam beber água». Mais para diante, com 16 anos, com contornos curiosos até na pedagogia, fui confrontado com outra situação. Num exercício com 6 jogadores para rematar à baliza, cada um tinha um número que, à voz do técnico, desferia o remate. Ora, o técnico em questão (muito conceituado no meio da formação) equivocou-se [risos] e deu ordem para o n.º 7, pensando ele que seria eu. Como ninguém rematou, acto contínuo, interroga-me por que estava parado. De forma inocente, mas firme, respondi que não existia o 7, porque só estavam seis jogadores. Bem, isto custou-me duas semanas fora da convocatória…

Abdicou de ser jogador profissional de futebol ainda muito jovem. O que o levou a tomar essa decisão?

A decisão foi minha e fruto do contexto. Sou, por vezes, avesso a tomadas de posição precipitadas. Mas, por outro lado, considero-me pragmático na avaliação das situações. Do que dependia de mim, honestamente, sabia não reunir condições para ser atleta de primeira linha, embora tenha jogado a um nível bastante aceitável na formação [Campeão Nacional de Juvenis e Júniores]. Algumas oportunidades surgiram, mas colidiam com outras situações que iriam obrigar a mudanças radicais. Chegado a um determinado momento, fui obrigado a abandonar a carreira profissional, continuando a carreira, mas como amador. Desta forma, a gestão do tempo era muito mais flexível e permitia-me desenvolver outras áreas com a família. Agora, como confidência, poderei afirmar que foi nesse preciso momento que decidi vir a ser treinador. Digamos que fiz parar o jogador profissional, pensando na possibilidade de vir a ser treinador profissional.

Pensou logo em enveredar pela carreira de treinador?

Tem que ver com a questão anterior, porque, na minha cabeça, estava implícita essa vontade. Não sabia se iria conseguir. Mas era esse o meu grande objetivo. Cá dentro, tinha essa ideia definida, fazendo tudo com calma e perseverança. Calma, porque fui-me formatando em cursos de futebol, de psicologia e de gestão de recursos humanos. Com perseverança, no sentido de ter percorrido esse trajecto sem ajuda e sem aconselhamento nessa fase. Olhando para trás, é algo que me orgulha.

Treinou Feirense, Naval, Penafiel, Sporting da Covilhã, Académico de Viseu e Leixões. Sonhava sair de Portugal ou a ida para a Argélia foi um acaso?

Tenho de fazer uma ligeira correcção e, da mais elementar justiça, se me permite. Não treinei somente estes. São, isso sim, os clubes profissionais onde trabalhei. Comecei no Formiga, clube amador, e como jogador-treinador. Aqui foi a minha primeira experiência. Depois, apareceu o Alfenense, iniciados, e, a meio da temporada, passei para os seniores. Estive um ano no FC do Porto como observador (no scouting), sob direcção do eng.º Luís Gonçalves, actual Director Desportivo do plantel sénior portista. De seguida, estive cinco anos no FC Pedras Rubras, subindo do distrital até à 2.ª divisão, algo inédito no clube. Só depois o trajecto pelos clubes que referiu.

E quanto a ida para a Argélia…?

A Argélia e o Paradou surgiram de forma natural. Aliás, devo confessar, nunca fui de traçar planos de forma estanque. Tenho ambições, como é normal. Mas tudo tem acontecido de forma natural. O convite, para sair de Portugal, tinha surgido antes, mas as propostas não reuniam condições fortes para fazer-me pensar. No caso concreto, até estava para começar a época no Leixões. Os responsáveis do Paradou foram claros e inequívocos na abordagem. Primeiro, demonstrando conhecimento profundo do Francisco Chaló, nas várias vertentes, humanas e profissionais. Segundo, transmitiram essa vontade de forma insistente, mesmo as minhas recusas iniciais. Do meu ponto de vista, era algo que poderia ajudar a minha carreira. Um valor acrescentado de know- how para o futuro, no sentido claro de demonstração de adaptação a trabalhar no estrangeiro. E num clube de formação, sem títulos e numa conjuntura bastante adversa. Era, claramente, um desafio que se impunha a mim mesmo e que me dava o acesso à I Liga, outra vez.

Como foram os primeiros tempos no Paradou?

Muito difíceis, em todos os sentidos. Um país com costumes diferentes, transversais a tudo o que possa imaginar-se – religião, gastronomia, cultural, etc. – que obriga a uma adaptação e o encarar, como espírito de missão, tudo o que nos rodeia. Escutar as rezas, a altas horas da manhã, o ter cuidado com a forma de vestir e tudo o mais. Não é de todo fácil quando nem sequer há tempo para conhecer e adaptar. A nossa profissão, nesse capítulo, é madrasta. Não temos tempo… Somos confrontados com o “acelerador a fundo” em tudo, o que nos dá algumas capacidades e defesas. A questão das tradições e de ser estrangeiro pesa, de forma considerável, em tudo o que nos rodeia, pessoal e profissionalmente. A atenção e a absorção de tudo é fundamental no desenvolvimento dos mecanismos de aquisição para a intervenção e, consequentemente, a adaptação. É uma experiência tão difícil quanto enriquecedora. Sinto-me mais preparado, indubitavelmente. Do ponto de vista profissional, reflexo de uma cultura diferente, os problemas subjacentes ao exercício normal no dia-a-dia são diferenciados dos dos europeus. Foi por aí que comecei. Fomentando sinergias comportamentais para o entendimento do que pretendia. Felizmente, o sucesso foi enorme, conseguindo bater recordes, a todos os níveis, mesmo na valorização dos activos, com vendas de jogadores por valores nunca antes vistos na Argélia. Estou convencido de que, somente isso, permitiu a aceitação do que implementei e que era muito diferente do habitual.

Trata-se de um país culturalmente diferente de Portugal. A adaptação ainda está em processo?

Em casos como este, arrisco a afirmar que a adaptação é contínua. Um processo nunca acabado. Apesar disso, o tempo e as vicissitudes passadas ajudam, muito, naquilo que se passa todos os dias. Não posso deixar de referenciar algo muito importante e que traduz o contexto que vivo no projecto Paradou: – a equipa mais jovem do campeonato; – o clube mais recente na I Liga e sem adeptos ( ao ponto de ter 30 adeptos fora e 100 em casa) com assistências de 7 mil pessoas); – o orçamento mais baixo da I Liga; – sem campo próprio; – algumas vezes sem campo para treinar; – sem contratações, sendo a base de recrutamento na cantera do clube; – depois de um brilhante 3.º lugar no ano passado, perder 50% dos titulares e colmatar com júniores; – atingir, também pela primeira vez, a CAF e jogar chegando à fase de grupos com estreia total de todos os atletas na prova. Enfim, poderia enumerar uma infinidade de pontos para justificar que a adaptação pode ser algo em processo contínuo.

Que experiência mais marcante viveu na Argélia?

Num país apaixonado pelo futebol, onde não há dia certo para jogar – qualquer dia pode ser dia de jogo –, com assistências fervorosas e alto policiamento, é difícil imaginar a dificuldade em jogar por… invasão do balneário por adeptos com sabres, facas e pedras. Isto a acontecer antes, durante e depois do jogo. Algo inacreditável, de tempos primatas, mas que aconteceu. Por outro lado, mais positivo, sendo um treinador estrangeiro e de um clube sem expressão e historial, ser interpelado, na rua, por adeptos de grandes clubes adversários para felicitar o trabalho desenvolvido é algo gratificante. Culminou com a atribuição do título de Melhor Treinador Estrangeiro, denominando a equipa do tiki-taka argelino. A comunidade futebolística tem sido positiva no acolhimento, e a sociedade em geral também. A comunicação social faz eco do trabalho desenvolvido e, outras entidades oficiais, fazem questão de demonstrarem apreço, convidando para eventos nas embaixadas. Nas múltiplas viagens efectuadas, na participação da CAF, todos os embaixadores dos países visitados foram de uma amabilidade extrema para comigo, recebendo-me nas suas residências oficiais.

Ganhou muita notoriedade na Argélia. Estava à espera de ser apontado como a grande estrela do futebol do País?

Não é a questão de estrela, mas o reconhecimento do trabalho desenvolvido é algo que nos deixa satisfeitos. Estar num país, longe do nosso, e sentir o apreço por aquilo que fazemos é deveras marcante. Apelidarem a equipa de um futebol actual, requintado e rico nos condimentos tácticos, onde o jogador é mais debilitado, é muito reconfortante. Fundamental! Sentir o respeito profissional aliado à componente humana… Algumas individualidades argelinas têm tido gestos simpáticos e realço Madjer (de que todos os portugueses se recordam), que me acolheu de forma extraordinária.

A sua família ficou em Portugal. Como consegue gerir as saudades?

Estar longe de quem mais gostamos não é fácil. Vestir o “fato-macaco” e encarar como missão ajuda muito. Felizmente, as novas tecnologias ajudam ao contacto, mas é sempre difícil de ultrapassar. Temos de ser fortes e o apoio de quem se gosta é fundamental para minorar os momentos mais frágeis. O trabalho é o escape para tudo.

Com o campeonato parado devido à covid-19, regressou a Portugal. Já tem data de regresso?

Ainda existem dúvidas em relação à retoma dos trabalhos. A crise chegou mais tarde e, por conseguinte, o confinamento vai manter-se até mais tarde. Como previsão, apontam para 30 de maio a possibilidade de iniciar os treinos. Mas estamos dependentes da abertura do espaço aéreo.

Perdeu o seu pai há pouco tempo. Viver essa perda em plena pandemia tornou o processo de luto mais difícil?

Um dos momentos mais difíceis e delicados da minha vida. Tinha estado em Portugal (e com ele) em 2 de dezembro e, infelizmente, foi a última vez que estive, presencialmente. Com a paragem do campeonato, devido à covid-19, consegui chegar ao nosso país em 20 de março, obrigando-me a fazer quarentena para salvaguarda dos meus. O destino foi mesmo atroz para comigo, pois o meu pai faleceu sem eu conseguir estar com ele… Até nisso o maldito vírus impediu de estar com o meu pai. Sem esquecer tudo o que aconteceu com as cerimónias fúnebres, no pico do estado de emergência… Indescritível, até no facto de não poder abraçar a minha mãe e a minha irmã, únicas pessoas com permissão para estarem no funeral. Horrível!

Pretende voltar a treinar uma equipa portuguesa?

Um treinador é um trabalhador do mundo. Há muito que a nossa profissão entrou na globalização. Voltar a Portugal é sempre um objectivo, caso sejam reunidas as condições para tal. Com toda a naturalidade, tudo está em equação. Neste momento, tenho contrato no Paradou até junho. Depois, logo se verá o que irá acontecer. Gostaria de voltar ao meu país e, estou certo, tal irá acontecer. Mais cedo ou mais tarde…

Para um grande?

[… silêncio.]

O campeonato português está prestes a recomeçar. Como analisa esta época e quem acha que tem mais condições para se sagrar campeão?

O campeonato português é visto na Argélia. Sempre que é possível, vejo os jogos, acompanhando o desenrolar dos acontecimentos. Leio, todos os dias, todos os jornais portugueses, para estar a par de todas as notícias. Esta época, como acontece todos os anos, tem sido competitiva, com aspectos mais ou menos positivos. Os problemas são os mesmos. Assim como os candidatos. Porto e Benfica estão na luta pelo título e vai continuar até ao fim a incógnita para alcançar o ceptro. Existem algumas desilusões, atendendo a investimentos efectuados, gorando algumas expectativas iniciais. Mais para baixo, Rio Ave e Gil Vicente são as surpresas positivas, com um Braga a trilhar um caminho igual aos últimos anos, com regularidade na luta acesa pelo pódio com o Sporting. Na luta pela despromoção, a surpresa, pela negativa, apresenta-se no Portimonense, que, do meu ponto de vista, possui plantel suficiente para almejar outra tranquilidade. Lamento a II Liga não jogar até ao fim. Esta medida não é positiva para o futebol.

Texto: Cynthia Valente

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